Primeiro caso com irmã de caridade

Written By Ana Claudia Gomes on sábado, 2 de julho de 2022 | 17:44


 

Helena e Rosa conversavam sentadas no telhado da casinha feita com troncos de madeira no parque de diversões da vila. Ali moravam com suas famílias, a de Helena vinda de Minas e a de Rosa vinda do Pará. Eram adolescentes, todas as tardes conversavam sobre estudos, namoros, causos da vida, enquanto aquele glorioso sol se punha por trás da mata.

Helena perguntou: mas você nunca sofreu mesmo racismo? Rosa fez cara séria e respondeu: sofri, sim! Andei me lembrando esses dias depois de você me perguntar! Na minha primeira escola, para onde fui levada pela patroa do meu pai, uma irmã de caridade dava aula de religião. Havia aquele livro, A Bonequinha Preta, e ela me apelidou de bonequinha preta, me chamava de neguinha, me dava beliscões. Parece que ela não se conformava das meninas mais ricas da escola viverem em volta de mim! Era branca, com umas manchas escuras no rosto. Muito feia... 

Um dia, ela me beliscou, não aguentei não, cuspi na cara dela. A diretora, justamente a patroa do meu pai, chamou minha mãe à escola, para reunião com a professora, mas também chamou minhas colegas. Então elas contaram o que a irmã fazia comigo. Ela foi transferida para um trabalho administrativo na escola... E Rosa riu.

Helena não se deu por vencida: eu também tenho o meu primeiro caso com irmã de caridade! Fiz o pré e o primeiro ano numa escola de freiras, no sul. No pré, tudo bem, apesar que toda sexta-feira a gente caminhava até uma gruta para rezar a Nossa Senhora, e eu não sabia rezar, pois era evangélica. Ficava num medo da professora falar alguma coisa! Nunca falou.

Mas no primeiro ano, o bicho pegou. Minha mãe preparou meu uniforme, conga azul, meia branca, saia plissada azul e blusa branca. E um poncho de tricô vermelho, pois sempre fazia muito frio. Veio a irmã diretora conferir a gente na fila de entrada, e deu um escândalo. Onde já se viu uma pessoa com poncho vermelho, numa escola onde o uniforme é azul e branco? Não vai voltar pra casa hoje, mas amanhã só entra com a mãe.

Cheguei em casa aterrorizada, disse Helena. Falei para minha mãe que não voltava à escola. Minha mãe era uma italianinha brava, viu? No dia seguinte disse: passa na minha frente e vamos à escola. Chegou lá, explicou à diretora, muito altiva, que já tinha investido todos os recursos disponíveis no mês para comprar meu uniforme e material. Não dava para fazer um agasalho azul naquele mês. Pronto. Eu virei tipo o ET do poncho vermelho na escola. Todo mundo de azul e branco.

Rosa fez menção de falar, tipo, o meu caso é muito mais contundente que o seu. Mas Helena mal respirou: também tenho o meu primeiro caso com professora de religião. Ela foi minha professora na quinta série. Poucos dias depois do início das aulas, apontou o dedo para mim e perguntou: quem criou a sua religião?

Titubeei. Respirei fundo, sem convicção, e respondi: Cristo, ora! Não, disse a professora. Cristo criou a Católica. A Protestante foi criada por Martinho Lutero!

Fiquei arrasada. Mal podia esperar o dia da Escola Dominical para perguntar à minha professora de lá. Ela, muito carinhosa e cuidadosamente, explicou: Cristo não criou nenhuma religião, nem mesmo a Católica. E sim, foi Martinho Lutero quem criou a Igreja Protestante. Mas nós ainda somos protestantes pentecostais! Houve outros fundadores!

Fiquei confusa e resolvi ler a Bíblia toda.

Rosa levou um susto: você leu a Bíblia toda? Sim, disse Helena, eu e meus dois paquerinhas. A gente leu mesmo porque estava paquerando. Foi tipo uma competição. 

Mas você leu toda? Duvidou Rosa. É, pra te falar a verdade, disse Helena, teve umas partes que eu não entendi de jeito nenhum. Fica como seu eu não tivesse lido. Como o livro de Juízes. Deus nos acuda! Por outro lado, adorei os Cantares de Salomão...

Helena também era evangélica. Balançou a cabeça, um tanto absorta, afirmativamente. Você pode ter contado mais casos do que eu. Mas o meu caso com racismo e com professora de religião é mais contundente que os seus.

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