Rosamira estava um stress só. De volta à casa no ônibus, após pesadas compras, sentia sono e lamentava a recorrente insônia das últimas semanas. Muitas angústias no trabalho a faziam recordar toda uma história de conflitos nas empresas onde trabalhou. Por que insisto em inventar tanto, minha Deusa? Por que acredito nesta falácia que me repetem desde a infância, de que sou inteligente? De que serve ser inteligente mesmo, se todos parecem preferir pessoas boas e simpáticas?
Olhava suas mãos calejadas, seus negros braços com tantas cicatrizes, as numerosas sacolas ao chão. O ônibus cheio e os cheiros. Ah, que bom que estaria em casa, breve. Suspirou.
Da parada do ônibus até em casa, resfolegava e pensava aliviar-se do peso, tomar um banho no cubículo e deitar na rede apertada na pequena área de serviço, junto às flores.
Abriu a porta, estacou. A casa estava cheia de gente! Viu primeiro suas colegas de trabalho e se perguntou como haveriam entrado ali. Argélia, a loira amada por todos, funcionária do mês quase toda vez, tinha os olhos injetados e, à frente de todas, dirigiu-se a Rosamira. O que te deu na cabeça de apresentar ao chefe maneiras de produzir mais e melhores parafusos? Já não temos trabalho o bastante? As colegas pareciam um bloco e vinham passo-a-passo na direção de Rosamira, como prontas a lhe dar uma sova. Djenane, a linda mulata que seduzia toda a chefia, parecia a mais ameaçadora, embora mignon e sempre de voz delicada. Rosamira esperou o pior.
Mas desviou os olhos para os fundos da casa, onde estava a sonhada rede e, de relance, viu que a casa estava uma bagunça. Parecia ter sido revirada por alguém que quisesse encontrar algo. Foi quando avistou Letícia, a garota ébano a quem amava. Rosamira, num zaz, passou ao largo das colegas, abraçou Letícia e a beijou vorazmente. E fez amor com ela ali mesmo, para o pasmo e paradeiro de toda a gente presente, inclusive a pequena filha de Letícia.
Foi como se a cena de um filme congelasse diante de um controle remoto. Rosamira olhou Cecília, a filhinha de Letícia, que exibia tristes olhos. Puxa, pensou Rosamira, eu me excedi mais uma vez...
Virou-se para o bloco. Estavam todas estateladas como estátuas ao sol. Mas então avistou curiosa cena: sobre sua pia de cozinha, cheia de pratos e restos de farta comida, como se ali houvesse havido um banquete, estava uma pequena vaca branca. Do tamanho de um cachorrinho.
Aproximou-se. A vaquinha tentava alcançar a comida que estava além do bojo da pia. Compadeceu-se Rosamira. Pegou de uma tigela e serviu leite de sua sacola de compras à vaca, que resistiu. Seu olhar estava fixo nos brócolis e cenouras distantes de seu alcance. Rosamira exasperou-se. Onde já se viu vaca querer comida de gente? Recolheu os pratos e despejou a comida na lixeira.
Virou-se cento e oitenta graus e só então avistou Jane e sua nova namorada. Jane estava linda! Uma pele lisa e jambo, nem parecia que se haviam passado quase três décadas. Jane fora sua colega na frustrada tentativa de cursar uma universidade. Rosamira não conseguira conciliar o trabalho, onde inventava, com tantos textos.
Olhou Jane e sorriu. A ex-colega era, já na universidade, atriz, elegante, ética, e ajudava Rosamira emprestando as cópias xerográficas dos lindos e numerosos textos. Rosamira andou na direção de Jane e pôde ver de perto o terno e acolhedor olhar da namorada.
Jane e a moça desconhecida enlaçaram Rosamira com os braços e aquilo ali parecia berço, útero, sei lá. Então Jane segurou a mão de Rosamira e, com a outra mão, indicou todo o interior da caótica casa: por que você perde tempo com isso tudo, Rosa? Vamos para a universidade!
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