Uma noite, não sei por qual matéria, danei a falar de embelezamento das favelas, e falei de alargar ruas e, para isso, desapropriar, etc. e tal. Deu uma espécie de brisa fria em nossa classe e se enregelaram os corpos de meus estudantes. Foi quando Gislande levantou a voz, sempre com afeto, e: "não, professora, não é assim que embelezamos favelas". Com muito poucas e sábias palavras, ela ensinou sua professora. E por isso é importante que estudantes questionem professores e cidadãos questionem autoridades.
Anos depois, voltando da faculdade, num ônibus, li um artigo sobre favelas como patrimônio cultural. Sobre a carga de memória e cultura que têm os bairros populares. Lembrei de Gislande e nunca mais deixei de lembrar, em várias ocasiões.
Ultimamente tenho lembrado muito dela por conta das desapropriações no Beco Fagundes, situado em sua própria comunidade. Boto fé que ela esteja militando por lá.
Também lembrei muito dela quando estudei a reforma urbanística de Rodrigues Alves, no Rio de Janeiro, que "botou fora" o povo e fez certas áreas da cidade maravilhosa. E ainda quando visitei Tiradentes, aqui em Minas, que também formou uma ilha para inglês ver e pôs o povo para nela trabalhar. Lamento, mas não curto Tiradentes.
Lembrei ainda mais quando li variados textos sobre o conceito de gentrificação (que vem de gentry ou nobreza). A gentrificação é uma recomendação das "nações unidas', para embelezar lugares e oferecê-los ao consumo dos turistas. Estes, assim, não conhecem os lugares, mas os compram. E dessa forma temos viajado, não é mesmo?
Ora, o eco de Gislande diz: os becos são belos, são inteligentes e guardam muito afeto. Nós não os devíamos embelezar senão com o protagonismo da própria gente que os criou e os habita.
Agora, eu colhi do jardim da vida a Flor do Imbiruçu. O Imbiruçu é um antigo lugar entre Betim e Contagem, onde também se encontra o Beco Fagundes. Além de milhares de gentes com histórias de desapropriação e criação. As "nações unidas" também recomendam cuidar dos lugares onde habitam memórias de grande significado para as populações.
E por a Flor do Imbiruçu também ter me colhido, minha história está com o Beco Fagundes.
A flor do embiruçu
Machado de Assis
Quando a noturna sombra envolve a terra
E à paz convida o lavrador cansado,
À fresca brisa o seio delicado
A branca flor do embiruçu descerra.
E das límpidas lágrimas que chora
A noite amiga, ela recolhe alguma;
A vida bebe na ligeira bruma,
Até que rompe no horizonte a aurora.
Então, à luz nascente, a flor modesta,
Quando tudo o que vive alma recobra,
Languidamente as suas folhas dobra,
E busca o sono quando tudo é festa.
Suave imagem da alma que suspira
E odeia a turba vã! da alma que sente
Agitar-se-lhe a asa impaciente
E a novos mundos transportar-se aspira!
Também ela ama as horas silenciosas,
E quando a vida as lutas interrompe,
Ela da carne os duros elos rompe,
E entrega o seio às ilusões viçosas.
É tudo seu – tempo, fortuna, espaço,
E o céu azul e os seus milhões de estrelas;
Abrasada de amor, palpita ao vê-las,
E a todas cinge no ideal abraço.
O rosto não encara indiferente,
Nem a traidora mão cândida aperta;
Das mentiras da vida se liberta
E entra no mundo que jamais não mente.
Noite, melhor que o dia; quem não te ama?
Labor ingrato, agitação, fadiga,
Tudo faz esquecer tua asa amiga
Que a alma nos leva onde a ventura a chama.
Ama-te a flor que desabrocha à hora
Em que o último olhar o sol lhe estende,
Vive, embala-se, orvalha-se, recende,
E as folhas cerra quando rompe a aurora.
https://www.portalsaofrancisco.com.br/obras-literarias/a-flor-do-embirucu (acesso em 26/03/22)
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