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Bolsonaro e o livro didático

Written By Ana Claudia Gomes on segunda-feira, 6 de janeiro de 2020 | 08:52


Os jornais noticiam mais uma vez declarações superficiais do Presidente do Brasil. Fatos corriqueiros que a mim me envergonham constantemente. Dessa vez, novamente, a educação como alvo, razão pela qual não quero silenciar.
Refiro-me especialmente às declarações sobre os livros didáticos, taxados de trazerem "muita coisa escrita". Os opositores, entre os quais estou, também trataram essas declarações de maneira superficial porque, de fato, foram muito infelizes. Certamente, a ideia foi ouvida de assessores e, no afã descuidado do mandatário, banalizada.
De fato, o livro didático brasileiro tem muita coisa escrita. Tive oportunidade de ser avaliadora e revisora de coleções. As regras do Ministério, para comprar e distribuir as coleções, induzem um certo enciclopedismo, isto é, a tentativa de abranger a totalidade do que se sabe sobre cada objeto do conhecimento. Inclusive as novas conquistas de cada área.
À parte que não se pode abranger a totalidade do que se sabe sobre cada tema, pois a visão dos sujeitos é sempre parcial e seletiva, acresça-se que a educação brasileira, em geral, considera pouco o pensamento pedagógico propriamente dito. Conforme esse pensamento, a apresentação de novos conhecimentos deve considerar a idade e a cultura média do público-alvo. Basta voltar às contribuições de Jean Piaget que, embora um tanto generalistas, ajudam a compreender que o pensamento e a linguagem têm um desenvolvimento, que condiciona as formas de acesso ao mundo.
No caso da sociedade brasileira, deve-se considerar ainda que vem de um secular analfabetismo e só muito recentemente alcança o acesso a um Ensino Fundamental universal. Seu processo de alfabetização, portanto, ainda não está elevado o suficiente para que processe o texto de adultos especializados em cada área de conhecimento. Este, por suposto, pensa abstratamente e domina um espectro conceitual de sua área, em grande parte inacessível a um extenso universo de crianças de jovens, bem como adultos menos letrados.
Como professora, eu diria que os livros para crianças contemplam melhor o universo destas, embora continuem além do alcance principalmente dos filhos de trabalhadores que frequentam escolas públicas. Ainda nas primeiras séries do Ensino Fundamental, eles aprendem procedimentos pragmáticos que permitem selecionar trechos dos livros adequados a responder questionários. O ideal seria que esses textos fossem mediados, isto é, lidos e comentados por adultos bons leitores. Coisa que nem sempre os professores têm condições e formação suficiente para serem.
A leitura deveria se tornar o grande mote do Ensino Fundamental, juntamente com o afeto, o concreto e o lúdico. As crianças deveriam voltar a ouvir a leitura entonada do adulto, a ler silenciosamente, a ler oralmente, a responder oralmente questões de interpretação e, especialmente, a ler para a fruição. E apenas muito secundariamente escrever. 
Os textos deveriam ser mais curtos mesmo, apoiados sistematicamente por imagens. Os livros didáticos não deveriam ter status superior a nenhuma outra mídia nas escolas, que deveriam incorporar vídeos e acesso à internet com a mesma intensidade com que adota livros, o que ainda é impossível para a maioria das escolas públicas.
Os livros didáticos, por sua vez, deveriam buscar maior complexidade progressivamente, considerando, por exemplo, que os estudantes não têm um salto cognitivo repentino e automático do quinto para o sexto ano - o que na cultura escolar brasileira ainda é um dado: a passagem dos anos iniciais para os anos finais. Dever-se ia ainda considerar que todo o conteúdo dos anos finais do Ensino Fundamental é reapresentado no Ensino Médio e que, portanto, pode-se pegar mais leve na adolescência.
Muito ainda poderia ser dito sobre esse aspecto da educação, mas é melhor que os textos para brasileiros sejam menos palavrosos. De forma que o Presidente, por falta de se aprofundar naquilo que diz, como representante do país - que não é pátria nem nação - mais uma vez errou no tom. Nesse caso, corremos o risco de que palavras atabalhoadas sejam sucedidas por ações atabalhoadas.
E por não ser o Brasil pátria nem nação, compreende-se também o porquê de bandeira e hino nacionais nos livros didáticos: para difundir uma ilusão.
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