O decreto

Written By Ana Claudia Gomes on terça-feira, 15 de outubro de 2019 | 15:27

Representação do anúncio público do Édito de Milão

Cristóbal Azurita encerrou sua tarde em péssimo humor. Funcionário da Biblioteca Pública Municipal, finalmente se dava por vencido e desejava sua aposentadoria. Coisa nunca antes desejada, pois amava seu trabalho: devorava todo o acervo literário da casa em que servia, sem nunca descurar do atendimento ao público, acompanhando leitores às estantes, indicando e discutindo obras, e realizando o trabalho técnico. Já fora premiado várias vezes por tão dedicada e criativa carreira e vulgarmente se dizia que era uma enciclopédia ambulante.
Porém, fora tomado naquela tarde por uma sensação deprimente de déjà vu. A semana fora marcada por mais um decreto sobre emergências financeiras na administração municipal. 
Cristóbal sabia que pequena parte da população ficava sabendo desses atos executivos, embora quase toda ela fosse por eles atingida. Porém, a quase totalidade do público leitor da Biblioteca era do tipo que se informava dessas coisas. De forma que a semana transcorrera, para ele, ao som dos sussurros dos leitores: será suspenso o concurso? Qual nada, os comissionados vão permanecer... Imagina o absurdo! Fechar unidades de saúde! E assim sucessivamente.
Cristóbal não era um bibliotecário ortodoxo a respeito do silêncio na Biblioteca. Fazia ouvidos moucos à interação social no recinto, desde que feita em baixos tons. E o diz-que-diz-que até o divertia, melhor informando seu imenso saber.
Mas de decretos de emergência financeira, Cristóbal descobriu-se farto. Aos mais de trinta anos de serviços prestados, já assistira ao desenrolar de vários. Criava-se sempre um fato, ou, conforme ele costumava dizer, um fogo fátuo, em torno do qual a opinião pública se agitava. Crítico, o público em torno de Cristóbal sempre denunciava as contradições, isto é, os investimentos injustificáveis que a administração pública não cessava de fazer. Depois, as medidas iam se amainando. Sempre em função do "fogo amigo", expressão cunhada por um antigo e querido chefe de Cristóbal: expressão que, na esfera pública municipal, queria dizer a oposição feita pelos próprios aliados do governo, para que não houvesse cortes no seu status quo - contratos, cargos de confiança, nichos de manipulação das verbas públicas. Enfim.
Dessa forma, ao fim, ao cabo, os decretos mal passavam de efetivos cortes nos serviços públicos que não fossem do interesse dos aliados. Tudo retornava à normalidade em pouco tempo, para logo ser editado outro decreto.
O que mais irritou Cristóbal naquela tarde foi a constatação de que diversos contumazes leitores, pessoas de elaborada cultura, continuassem a participar desses ciclos viciosos. Continuassem a dar publicidade a eventos de marketing, que era como Cristóbal avaliava os decretos.
Então, às dezessete horas, assomou à sala da Diretora. Uma figura. Magro, altíssimo, com olhos azuis muito perspicazes, um bigodinho curvo para o alto e uma indefectível barbicha. 
Com licença, dirigiu-se à Diretora que, prontamente aquiesceu. Então Cristóbal quis saber de quantos dias dispunha na casa, já que ultrapassava frequentemente sua carga-horária, para alegria dos gestores. Estupefata, a Diretora disse que precisava fazer um levantamento, mas que os dias certamente eram inumeráveis. 
Mas, por quê, Cristóbal? Quis saber. E quase teve uma síncope quando seu melhor funcionário disse que precisava ir ao Instituto de Previdência para olhar questões de aposentadoria.
A Diretora argumentou que ele sempre manifestava o desejo de trabalhar até a idade-limite permitida no serviço público. Que a Biblioteca ficaria sem alma. E concedeu-lhe os dias que se fizessem necessários para descansar, passear, pensar melhor.
Cristóbal, com sua costumeira elegância, disse à Diretora que não podia mais. Que sentia chegar a hora de ter que mudar seu sobrenome para Zureta.
A Diretora riu, pois nisso reconheceu o humor de Cristóbal, e brincou: mas que bicho lhe mordeu, meu amigo? E engoliu em seco, capitulou, sentiu que a causa estava perdida com a resposta:
- Foi o Decreto.

Fonte da imagem: https://opusdei.org/pt-br/article/o-que-foi-o-edito-de-milao/ (acesso em 15/10/2019).
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