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Arqueologia das vilas operárias

Written By Ana Claudia Gomes on terça-feira, 21 de agosto de 2018 | 13:05


Já tive a oportunidade, diria privilégio, de viver em duas vilas construídas especificamente para abrigar operários enquanto se construíam obras de infraestrutura no Brasil.
Na primeira delas, vivi a primeira infância. Foi onde nasceu meu irmão e onde começaram minhas memórias. Suas casas de madeira eram confortáveis, pintadas por fora em verde claro e minha casa tinha um porão. Porão das minhas brincadeiras com crianças vizinhas, para onde arrastava meu saco de brinquedos. Ao fundo, um imenso vale verde, em cujo berço corria um límpido rio com seus patos. No quintal da minha casa, uma figueira, da qual minha mãe colhia os frutos para o nosso deleite in natura ou em deliciosos doces que até hoje agradam meu pai. Dos restinhos de doses de cachaça, que meu pai me apresentou. Do puxadinho construído por meus pais, para terem uma grande cozinha mineira.
De lá tenho minha primeira fotografia em cores. A lembrança de minha primeira sombrinha, conquistada por uma pirraça. Que me acompanhou até que eu declamasse "A menina da sombrinha" na igreja, eu que sempre gostei de um púlpito ou palco. Até hoje temos notícias de algumas pessoas que lá viveram conosco, inclusive meus padrinhos Perônico.
Na segunda dessas vilas, vivi a adolescência. Tempos de conflitos para a construção da identidade e de caras memórias. O único templo, onde se reuniam as igrejas católicas e evangélicas, com agenda negociada. Meus primeiros namorados. A escola onde fui uma das alunas pioneiras e onde um professor me libertou de sucessivos fracassos em matemática. O clube, onde dançávamos aos sábados e onde se apresentaram ícones musicais do tempo, inclusive Gretchen e Magal, para escândalo dos conservadores e delírio dos progressistas.
As casas eram também confortáveis, em madeira envernizada. Em cada uma delas, uma varanda em cimento vermelho encerado. Ali onde meu irmão e eu brincávamos com nosso primeiro cachorrinho, o pequinês Rhodes, que era mesmo de meu irmão, mas do qual sugeri o nome. Ele veio de lá no compartimento de cargas de um avião, aqui para as Minas, onde viveu conosco ainda por muitos anos.
Na vila de Samuel, em Rondônia, projeto da Eletronorte e cuja empreiteira foi a Norberto Odebrecht, deu-se a construção da primeira usina hidrelétrica daquele estado, e formou-se uma sólida comunidade, pelo contato de muitos anos.
Samuel era uma cachoeira do Rio Jamari, cuja paisagem foi completamente modificada para a formação do lago artificial e instalação das comportas.
Nos tempos de Sarney, quando da grave crise de desabastecimento no Brasil, nossa prosperidade era tamanha e não foi abalada, senão para os que perderam o emprego. Mas isso era do nosso cotidiano desde sempre. Meu pai mesmo perdeu e reconquistou seu emprego algumas vezes, mudando de cargo, aprendendo várias profissões. Lá, chegou a encarregado de uma grande equipe, sendo convocado às madrugadas para dirigir os consertos do sistema de britagem.
Às nossas margens, estava a monumental floresta amazônica e o grande rio, bem como fartos igarapés, que frequentávamos. Ah, como tive medo de navegar por ele numa frágil, mas perfeita canoa... Havia playground, onde troquei minhas confidências de juventude e observei aquele magnífico céu para meus primeiros poemas. O supermercado e o escritório central, onde buscava minhas primeiras cartas de amor. Envelopes, correios demorados, mas não carteiros. A biblioteca da escola, minha segunda casa.
De estudante, passei a professora da escola local, quatro anos depois. Sonhava trabalhar com jovens e adultos, na coordenação de Cida Nunes. Mas tive o privilégio de ser coordenada pela Olindina e aprender com a professora Indelécia a deixar a sala de aula impecável, até encerada... O que repeti em algumas de minhas salas de aula posteriores.
Minha família foi transferida antes do fim das obras. Depois veio o desemprego definitivo de meu pai, nos tristes anos Collor, e seu longo calvário até a aposentadoria.
Mas a comunidade de Samuel jamais se desfez. O dileto amigo Dirney Nunes criou um grupo em redes sociais, que frequentemente acha novas pessoas. Muitas fotografias e reminiscências daquele formoso lugar. No sudeste, tiveram lugar reuniões de confraternização dos antigos operários e suas famílias que tiveram condições de comparecer.
Ao final dos anos 2000, voltei a Samuel, levada por Tarjana, amiga de minha primeira faculdade, na Universidade de Rondônia. Vi com dor que a vila tinha sido inteira desmanchada e restavam os asfaltos e suas calçadas, cujas guias permaneciam antes sempre cuidadosamente pintadas de branco. A floresta já se reconstituía no lugar. O que era a única boa notícia.
A usina de Samuel fazia o seu trabalho de gerar energia para Porto Velho, que ainda não pudera desfazer-se de todo das antigas termoelétricas.
Outros voltaram lá depois de mim, numa espécie de arqueologia da vila. Minha querida amiga Núbia fez fotos e um vídeo das já robustas árvores às margens do rio Jamari, onde a construção da vila havia deixado um pequeno deserto de solo rachado. Ela soube que as casas da vila haviam sido vendidas, após desmontadas, havendo alguns exemplares na cidade de Porto Velho.
Havia outra vila semelhante naquela capital. Era mais sólida, destinada aos funcionários mais graduados daquela empreitada. As casas dessa vila foram mantidas, embora também vendidas, e se tornaram um valorizado bairro no tecido urbano. Voltei lá, onde me hospedei na casa de Janilda, outra querida amiga dos tempos da faculdade. Ali estava uma nova população privilegiada. Também fora ali o alojamento de nossos queridos professores de Samuel, alguns hoje participantes de nossa comunidade virtual. Inclusive de Geraldo Lara, o famoso professor de Matemática, hoje meu colega de rede municipal em Betim. Quanta coincidência privilegiada.
Alguns operários criaram raízes em Rondônia e se estabeleceram por lá, como num western ou Eldorado do Brasil. Era a nova ocupação da Amazônia, do sul para o norte, com prejuízo da formosa floresta e seus cursos d'água.
Fico pensando em quanto os suportes de memória dos trabalhadores foram devastados depois de monumentais construções. Quem terá arrastado aqueles enormes blocos de pedra que compõem as pirâmides do Egito? Viveriam eles e suas famílias em acampamentos na redondeza? Só escavações no entorno poderiam nos dar a saber.
De forma que eu sugeriria que se construísse um memorial aos operários de Samuel, se possível com ao menos uma casa. Gostaria que não restasse apenas a placa UHE Samuel, tantas vezes fotografada, e os vestígios em asfalto, que a floresta há de, justamente, devorar. 



(Com e para Núbia Mamede, guerreira e quase arqueóloga).

Imagem: http://rondoniaemsala.blogspot.com/2011/12/usina-de-samuel-em-rondonia.html Acesso em 30/12/2018.
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