Fachada da antiga escola Clóvis Salgado, em fotografia feita pela Prefeitura de Betim na gestão Newton Amaral (anos 70).
Betim tem, desde o útero, impulsos de modernização. Teve lá sua fase de modorra, em parte do século 19, mas todo mundo precisa parar para descansar.
A modernização constrói e também destrói. Os símbolos da construção são muitos. Para mim, é inevitável lembrar da Refinaria Gabriel Passos, em cuja construção meu pai trabalhou.
Já o ícone da destruição é a derrubada da Igreja Velha, templo católico colonial, uma ferida aberta, cujos vestígios estão nos textos, nos velhos corações, nos monumentos, no museu.
Atualmente, um dos símbolos da história e da cultura que pode ser, não destruído, mas rebaixado, é a Biblioteca Municipal. Como guardiã de diversos acervos culturais, custou a ter uma sede digna, atualmente na Rua do Rosário, dita Savassi de Betim.
A Rua do Rosário também é um ícone, desde ser o principal caminho do povo negro para suas habitações simples, no Angola e região norte do município, até ser hoje um incipiente centro de gastronomia e outras culturas.
A sede da Biblioteca foi uma das primeiras escolas monumentais construídas para a gente simples da cidade. Na era JK, desenvolvimentista por excelência, e modernista na arquitetura, como bem sabem a Pampulha e Brasília, a escola foi construída através dos recursos administrados pelas "damas" ligadas ao então governador.
Pois a política das mulheres era quase exclusivamente a filantropia. O que mudou pouco se olharmos nossos parlamentos, nosso Executivo... Mas eram tempos de Noemi Gontijo e Gilda Bayma em Betim.
Na primeira metade do século 20, uma escola com tal aparato era um luxo. O desenho da escola é belíssimo, e sua fachada, agora escondida por um muro que caracteriza a maioria das escolas, um mimo. Antes, ficava de cara para a Rua do Rosário e a engalanava, quando mal estava urbanizada.
O modelo de escola primária naquela época era o grupo escolar.
Grupo escolar era a reunião das escolas isoladas da redondeza, geralmente regidas por um único professor, nessa época já mais professoras, com alunos de diversos níveis. No grupo, as crianças eram separadas por níveis, as séries, que foram criadas no Brasil no final dos oitocentos.
A seriação da escola primária, como toda reforma educacional, demorou muito a chegar aos rincões, como o Angola. Chegou nos anos 40.
O grupo era para se chamar Lia Salgado, mas sendo esta viva, e havendo proibição legal para que nomes de pessoas vivas fossem dados a equipamentos públicos, chamou-se Clóvis Salgado.
Essa escola continua existindo, agora perto da Capela do Rosário.
Depois disso, o prédio abrigou muitas instituições. Lembro-me agora que houve um "ginásio", também o Colégio Comercial Betinense, em seus finais e arquivos, e o Cesec, centro estadual de educação de jovens e adultos, mais recentemente.
Finalmente, a Biblioteca o conquistou. Mas acham que lugares de livros e outros acervos são coisa antiga. A leitura virtual cresceu, assim como o mercado editorial no Brasil. De forma que a Biblioteca não agrega grandes públicos. É seu destino e não há mal nisso.
Ora, vejamos a Biblioteca Nacional. Prédio antigo, de belíssimas restaurações, guardiã de tudo o que se publica oficialmente no Brasil. Quando fui lá, não resisti, quis foto.
E por que não pode uma Biblioteca Municipal ter o mesmo mérito? Já está no prédio ideal, conta com um acervo quase que exclusivamente recomposto por financiamento estadual, federal e privado, guarda documentos importantes da história da cidade e deveria ter essa sua natureza acentuada.
Não é para estar lotada, é para estar. Para se poder contar com ela para pesquisa, para leitura, para empréstimos, para atividades de formação, para turismo.
Creio que dever-se-ia aproveitar a incipiência da savassinha e nela manter cravada a memória da cultura. Tirar os muros, dotá-la de segurança mais moderna, emoldurar seu entorno de belos canteiros e fazê-la voltar ao antigo status, de templo do saber, de cara para a artéria do Rosário.
Em patrimônio cultural, usa-se um conceito chamado revitalização. Um bem imóvel como é a sede da Biblioteca pode ser valorizado no que tem de belo, e melhor preparado para suas funções atuais. Pode atrair o olhar, e então leitores, pesquisadores, transeuntes. Para isso, além do imóvel, deve-se empreender sem medo uma política de leitura para a qualidade de vida na cidade.
Por uma política de bibliotecas e leituras
A Biblioteca de Betim é vista por muitos gestores como um elefante-branco: difícil de administrar. Isso tem relação com o atraso em conhecer as novas características e perspectivas da leitura e em manter um modelo tradicional. Vamos por partes.
A leitura mudou. Não se pode fazer vistas grossas à cultura digital, mas manter com ela uma relação propositiva e crítica. Não é à toa que centros de formação de técnicos na área adotaram o termo ciência da informação.
É necessário uma arrojada base de classificação e contra-referência, como a base pergamum, proposta pela Fundação Biblioteca Nacional, já antes utilizada em Betim, porém abandonada. Além disso, é imprescindível manter na Biblioteca e em sua rede centros e terminais de inclusão digital.
Um problema grave na Biblioteca Municipal e na própria fundação de cultura da cidade é a formação de sua equipe técnica. Não havendo equipe efetiva, recrutada por amplo concurso, as pessoas são arregimentadas conforme redes de sociabilidade, parentesco, clientelismo. Na prática, um esconderijo de profissionais da educação cansados dos processos de trabalho nesta área.
Aliás, uma biblioteca filiada e financiada pela educação vai na contramão da política nacional para bibliotecas. Sua missão de centro e equipamento de cultura deve ser urgentemente implementada. O que seria uma novidade absoluta em terras desta província.
A equipe deve contar com profissionais da informação, técnicos de biblioteca para o trabalho de gestão do acervo, educadores e artistas para a promoção da leitura. Suas potências, como o acervo em braille e os audiolivros, devem ser estimulados. Os projetos micro, mantidos pela vontade exclusiva de pessoas dedicadas à área, devem ser empoderados, se for o caso. Mas o que importa é a conexão dos projetos com a discussão ampla da área.
A aquisição de acervos deve ser levada a sério, quando nada através de projetos que busquem financiamento público e privado. A cidade agora tem o empresariado em alta conta, pode muito bem convidá-lo a pagar essa conta da instrução e da cultura inclusivas e universais.
As bibliotecas do município, escolares, comunitárias, os arquivos do município e seu próprio museu devem estabelecer uma teia com a Biblioteca Municipal, de onde derivem diretrizes para acervos e promoção da leitura. A simples guarda de acervos deve dar lugar a uma política de formação e estímulo à palavra, essa marca exclusiva da espécie homo sapiens.
A formação de leitores deve ser uma vanguarda da Biblioteca, replicada em toda a teia. É bom que conte com educadores e com artistas que contem histórias, dirijam e qualifiquem práticas parceiras da leitura, como a emergente cultura digital, o teatro, a dança, o circo, o cinema, o rádio e outras. Nunca de maneira folclórica ou voltada a espetáculos, apresentações apenas, mas reunindo todas essas linguagens dadas a ler.
Isso tudo num lugar belo e nobilitado, que ajude na integração que falta à cidade como um todo. E sempre com a circulação dos profissionais em espaços de vanguarda, grandes bibliotecas e universidades, para que esta província se torne metropolitana também em leitura e afins.
Obrigada,Ana Claudia, por traduzir em linguagem clara e concisa, as grandes necessidades da nossa Biblioteca e sua imensuràvel importância no processo de construção da cidadania. Um abraço.
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