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Crônica de um mundo caduco
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A crise
A crise
Written By Ana Claudia Gomes on quinta-feira, 31 de maio de 2018 | 13:27
A política interfere cotidianamente na vida de qualquer pessoa e, por isso, atravessa milênios a clássica máxima "o homem é um animal político". Entretanto, a vida em sociedade é tão complexa que nem todas as pessoas podem refletir frequentemente sobre a organização do poder. Algumas, geralmente porque detêm, exercem ou desejam o poder, é que consideram a variável política para tudo ou quase tudo na vida. Mas há momentos em que todos ou quase todos precisam considerá-la. É o que ocorre no Brasil pelo menos desde 2008.
Uma crise financeira internacional, considerada cíclica no atual modelo econômico hegemônico no mundo, por todos conhecido como capitalismo, pôs em xeque a dinâmica política interna do Brasil. Naquele momento, sob a liderança do Partido dos Trabalhadores, o Brasil tentava reformas de base social-democrata, que floresceram na Europa logo depois sua chamada Segunda Guerra e se esgotaram nos anos noventa passados.
Para o Brasil, a pauta social-democrata continua necessária e justa, devido à histórica alienação do povo do acesso à riqueza do país. A concentração de renda era e continua alta. Como consequência, o acesso à seguridade social, nomeadamente a alimentação, a saúde, a educação, a segurança pública, a vida cultural, dentre outras, era e continua insuficiente para a maior parte da população. As próprias agências reguladoras do sistema sócio-econômico em nível mundial apontavam, através de seus índices, a necessidade de ajustes no financiamento da vida social brasileira. Esses ajustes já ocorriam, embora de maneira mais conservadora, ainda na gestão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Com a eleição de Lula para a presidência do país, a população manifestava certamente o desejo de aprofundamento desses ajustes, o que era líquido e certo, dadas as origens e à trajetória política deste líder, de seu partido e de vários de seus aliados.
O país viveu tanto a euforia quanto a polêmica nos anos Lula. Embora para as próprias esquerdas mais orgânicas, sua política fosse lenta e gradual, e cometesse o engano de tentar promover a inclusão pelo consumo, parte da sociedade se incomodava com suas políticas para direitos humanos, para etnias, para gêneros, dentre outras. É inegável, porém, que suas políticas para a igualdade social constituíram verdadeiros oitenta anos em oito.
Quando a ex-presidenta Dilma foi eleita, a crise financeira internacional estava em curso. Havia um descompasso entre o contexto político internacional, de marcha conservadora, a necessidade das elites econômicas brasileiras de "fechar as torneiras" para manter competitividade na crise, e as posições de Dilma, que tendiam para o aprofundamento das políticas sociais ou esquerdizantes. Por isso, a legitimidade de Dilma foi solapada no Parlamento, e coube às mídias, grandes ou pequenas, desgastar a ex-presidenta junto à opinião pública.
Isso, entretanto, não era o fim da crise, pois restava pôr em curso um programa de governo que efetivamente fechasse as torneiras que respingavam sobre o povo e garantisse os lucros e a competitividade do empresariado.
Não se deve considerar apenas a economia como responsável por esse contexto. Parte significativa da sociedade brasileira também anseia por referências mais fechadas de vida social, dadas por uma visão de mundo mais conservadora, pois o mundo ocidental como um todo parece estar revendo as ideias de liberdade que criou. Isso pode ser exemplificado pelas mudanças no interior do cristianismo, a religião declarada pela maioria da população brasileira. Também pode ser exemplificado, com mais clareza, pela intolerância contra aqueles que vivem às avessas do binômio bem-mal.
Para a coalizão conservadora que atualmente dirige o Brasil, e não custa explicar que aqui conservadores são os que não acreditam ou não trabalham por maior igualdade social, o grande dilema é não ter um líder. Não ter uma pessoa dotada de bastante carisma, que possa agregar uma parte significativa da população em torno do projeto em curso. Ou não contar com um discurso, uma narrativa convincente para a vida social.
Todos os que participam da vida política sabem que, mais dia, menos dia, convulsões sociais podem ocorrer. Aqueles que, no dia-a-dia, não têm condições de se manifestar para a política, repentinamente podem fazê-lo diante de um fato novo, ainda que aparentemente insignificante.
A paralisação do transporte de cargas rodoviário constituiu um fato assim. Como todo movimento de política contemporânea, foi um fenômeno plural. Em sua liderança estava o próprio empresariado do setor. Em suas bases, havia reivindicações as mais diversas, inclusive de intervenção das forças-armadas. Uma ponta do iceberg cultural, que clama pelo refrão "ordem", muito arraigado na memória social desde a última intervenção dessa natureza ocorrida no país.
É útil, nesse momento, lembrar que um país com as extensões e os recursos do Brasil vem insistindo historicamente em privilegiar as rodovias para escoamento de riquezas. É caro e injusto. Todo o povo, inclusive os motoristas de caminhões, paga por isso. Há muitos rios navegáveis e muitas vias férreas desativadas.
A potência do Brasil no momento atual é que a política está na boca do povo. Os desenlaces pertencem ao tempo e às disputas entre os grupos de interesses.
Pairam ameaças à sobrevivência de quase todos, e por isso a teia do poder se torna objeto de debate até nas minúsculas redes virtuais de cada um. As famílias e igrejas falam de política. O mundo privado é tomado pelo público.
Isso é o que temos de bom para o momento. Pois, já antes, havíamos perdido as garantias constitucionais. Uma presidenta foi deposta e um ex-presidente de grande ascendência popular foi preso por razões políticas. Ações violentas de repressão às liberdades individuais acontecem pelo país. Reformas nefastas estavam e continuam em curso, desconsiderando a desvantagem da população brasileira em relação a populações de outras nações ocidentais, mesmo na América Latina.
No geral, o horizonte está cinzento. Mas a política sempre pode instituir o novo.
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