Povinnost’ é uma série em cinco episódios elaborada por Aleksandr Sokurov para a televisão russa em 1998. Devido ao tempo da televisão, todos os episódios têm a mesma duração, 52 minutos. A série não teve uma segunda temporada, possivelmente devido às razões aqui discutidas.
O autor nomeia o trabalho como uma narrativa cinematográfica
em cinco partes e descarta a possibilidade de que tenha se baseado em fatos
reais, visto que a obra trata das confissões de um comandante de navio militar, em missões no Círculo Ártico. Tais confissões teriam sido
escritas em um diário para que o comandante não se calasse diante de como
compreendia a sua própria vida e pudesse ficar em paz ao menos com a própria
alma. O diário em geral supõe não-publicação, como ele declara ser sua
intenção.
Sergei Bakai, o comandante, interpretado por Aleksandr
Borisov, tem 30 anos e acredita que chegou ao máximo que sua vida pode
alcançar: o auge da carreira, estabilidade, status. Mas ele acha essa vida sem
sentido e, de conversar com outros militares de sua patente, acredita que essa
é uma sensação geral, que pode atingir até aos recrutas, e por isso tem
notícias de que comandantes dirigiram seus navios sempre com uma arma e munição
prontos para um suicídio. A própria longa reflexão de Sergei Bakai pode ser
entendida como o processo de tomada de decisão sobre permanecer ou não vivo.
A série teve seu título traduzido para o inglês como
Confession, e críticos europeus consideram que Povinnost’ pode ser uma alusão
ou citação das Confissões de Santo Agostinho. Mas, em português, o título da
série é Obediência. E sendo livres as interpretações, eu diria que Povinnost’,
como prefiro chamar a obra, é a experiência de Aleksandr Sokurov, de
desobedecer por cinco longas horas. Ele faz da obediência o tema. Mas a
desobediência é o método.
Não sei como são os espectadores russos quando se dispõem a,
depois da jornada diária, ligar a TV para acompanhar uma série. Mas duvido que
no Brasil os telespectadores médios assistissem sequer a um episódio completo de
Povinnost’. Parece que Sokurov queria realizar uma bela obra, em diálogo com a
escola russa de cinema e apreciadores do cinema ao redor do mundo, mas não visava o sucesso e continuidade da série.
Cada episódio dedica longos minutos a que o espectador veja
e sinta a neve ininterrupta caindo de um céu escuro sobre um ainda mais
cinzento mar ou pedaços de continente. O comandante, falando por um narrador de
marcante natureza literária, que às vezes também é personagem e conversa com o
protagonista, porém oculto das câmeras, informa que raros dias têm mais de dez
minutos de sol. São representadas as rotinas do navio, lentamente
desenvolvidas, como tudo; uma lentidão que parece determinada pela aparente
inalterabilidade do dia, sempre cinzento, sem sol, e frio. O comandante diz que, para conviver com um tempo assim, longos
anos a fio, só lendo os escritores antigos, como Tchekov, várias vezes citado
em Povinnost’ e na obra de Sokurov. A ponto de dizer o comandante que os russos
só suportam os rigores de seu clima porque tiveram Tchecov para descrevê-lo. Ou
que, para suportar o branco e cinza do inverno nos mares do norte, a pessoa
precisa ler livros grossos dos escritores do passado. Precisa de fantasia. E
pode confiar nesses escritores.
Uma interpretação pátria e em grande estilo sobre o fato de
que os homens de pensamento e sensibilidade são os que podem tecer a trama da realidade,
conter seus esgarçamentos, seu caos, e torná-la inteligível para nós.
Aliás, o comandante, para suportar esses dias monótonos e
com tantos ainda pela frente, pois é um jovem, desenvolveu um hobby: memorizar,
palavra-por-palavra, numerosos contos de Tchekov. E disso pode ter derivado a
conclusão de que militares como ele, no século XIX, não tinham vivido a
sensação atual de perda do sentido da vida. Parecia-lhe que eles viam alguma
perspectiva e importância em suas vidas.
Memorizar contos inteiros como passatempo pressupõe tempo
ocioso, apenas a observar da cabine se tudo segue bem no navio. E rendeu uma
experiência de Tchekov ao espectador. Assim como a música vem de Tchaikovsky,
Wagner, Rachmaninoff e Takemitsu
Nos dois primeiros episódios de Povinnost’, Sokurov parece
dar um caráter documental ao seu trabalho. O espectador acompanha, até o
detalhe mais insistentemente naturalista, o cotidiano do navio. As imagens do
exterior do navio, a neve, o mar, o céu, as operações no continente, são filmadas
em preto-e-branco. No interior do navio, as cenas se passam em cores esmaecidas
e sensíveis, nas quais fica inquestionável o primor técnico de Sokurov.
Vemos um soldado limpar degrau-a-degrau, com um pano úmido,
uma escada da embarcação. Assim como, no convés, um recruta que derramou óleo
enfrentar um frio que chega a sentir quem vê, para limpar o líquido e assim
evitar que alguém nele escorregue, um acidente. Os banhos semanais dos soldados
são filmados em tempo expandido, assim como suas refeições, seu acordar, seu
deitar, o dobrar cuidadosamente uma roupa e estendê-la sobre um móvel. A
sensação para o espectador é de viver as cenas e não apenas tomar conhecimento
daquela forma de vida. E isso permite ver o filme como quem vê uma exposição,
selecionando detalhes, dispersivamente, a ouvir a música. Não é como um filme de ação, que exige concentração total para que o próprio enredo seja compreendido.
Nenhum incidente, nenhum acontecimento inesperado, nenhuma
rebeldia por parte da tripulação, nenhum truque para manter atento quem
assiste. Que pode descansar enquanto batem grandes ondas no casco do navio e
Sergei Bakai reflete sobre o que é segurança estando sempre em um navio, no
meio do oceano. Ele considera que estão em segurança as pessoas que caminham
nas ruas de sua cidade natal. Única alusão às suas origens, sem que saibamos de
parentes ou amigos.
É de uma exemplaridade absoluta o trecho em que um médico
examina um-a-um todos os tripulantes. Eles são orientados a tirar toda a roupa,
exceto as calças brancas, abaixo do joelho, à guisa de cuecas ou pijamas.
Depois são chamados por nome e revistados detalhadamente seus corpos. Sokurov
filma a passagem de muitos recrutas pelo médico, assim como os rostos daqueles
que esperam, visivelmente entediados, mas incapazes de qualquer reação. Chega a
ser constrangedor para um ocidental que assiste, tendo tão desenvolvidos os
sensos de privacidade e intimidade. Nesse e em muitos momentos, Sokurov retrata
a despersonalização no serviço militar.
Sobre isso, já no último episódio, o comandante reflete
sobre o porquê da existência do Exército. E conclui que, exigindo já a vida e a
nação a dureza de todos, para que sobrevivam, ao Exército cabe selecionar os
mais aptos. É uma escola. Mas Bakai pergunta por que são tão cruéis os métodos
de ensino no Exército. E diz que essa instituição precisa passar, não por uma
reforma, mas por uma revisão completa, assim como as próprias vidas humanas.
O Exército, uma metáfora da vida. É possível prever que
Sokurov refletia sobre a nação quando esta e seus porta-vozes, os poetas de
hoje, sentiam a perda do sentido após o fim do regime soviético: não mais haver
utopia ou inimigo. Não mais haver um consenso sobre por que viver.
Esse episódio, como aliás os dois anteriores, já não mais
dedica uma parte do foco a documentar a vida no navio, mas é inteiramente uma
reflexão existencial filmada. É quando ouvimos a voz do narrador em longas e
inspiradas palavras ditas por sobre os sons das ondas e dos maquinismos e vozes
no interior do navio. É quando o espectador que busca se
distrair do dia exaustivo certamente desiste. Pois aí Sokurov parece se dedicar
completamente à reflexão que perpassa sua obra, sobre os efeitos do isolamento
e da solidão na psique humana.
O comandante é filmado durante uma crise de ansiedade. A
gente vê sua massagem nas áreas doloridas, as contrações de sua pele quase como
dentro dele. Ele diz sentir frequentemente que algo pode acontecer a bordo, mas
pondera que provavelmente nada acontecerá durante sua vida inteira. Não deve
ser diferente do que sentem muitos humanos, embora inconfessadamente.
Para encerrar a primeira e única temporada da série, Sokurov
faz o comandante refletir pela enésima vez sobre suas razões para tomar ou não a
decisão extrema do suicídio. Ele chega à conclusão de que não põe fim à sua
vida por causa de emoções sentimentais que tem pelos outros. Ou, mais
especificamente, e aqui talvez uma surpresa, a gratidão que tem pelos recrutas,
que a tudo suportam com paciência e submissão. Não seus entes queridos no
sentido tradicional da expressão. Os seus subalternos e oficiais de mesma estatura, única família e amigos
que a vida do comandante lhe permitia ter.
O comandante acha que ficamos vivos por causa dos outros.
Especialmente se a vida desses outros é ainda mais miserável que a nossa e por
isso nos envergonhamos de desistir.
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