Salu ficava brincando de boneca no terreiro e vendo o que via ninguém. Montava lá seu canto com tijolinhos e tábua, botava fogãozinho, panela, as menininhas-bonecas todas. E nem tinha penteado cabelo ainda. Ficava dia todo despenteada, uma sujeirinha nas bochechas e vendo o mundo viver o dia.
Bisavó tava muito velhinha. E o mundo passava o dia todo incomodado com bisavó. Vinha vó e xingava. Vinha mãe, vinha tia, todo mundo xingava. É que bisavó passava o dia todo aprontando. Ia na panela de comida, pegava lá um bom bocado e jogava no terreiro todinho. Sentava, solfejava umas cantigas antigas que ninguém distinguia por palavras, balançava a bengala lado pro outro.
De repente levantava, varria o terreiro todo, juntava a comida num saquinho, atravessava a estrada poeirenta e jogava a comida no monturo.
Voltava então à panela, pegava mais um bom bocado e jogava no terreiro e cantava cantigas insuspeitadas e varria o terreiro e tudo de novo.
Mãe vinha de lá brava. Mas vovó, não tem comida que chegue nessa casa. Todo lugar que a gente vai pisar tem arroz. E ralhava. E vinha tia e vinha todo mundo e ninguém lograva fazer bisavó abandonar sua mania.
Salu cantava cantiguinhas também, penteava boneca e olhava bisavó com carinho.
É que um dia ela entendera. Bisavó jogara comida no chão, cantara suas cantigas, balançara bengala. Depois olhara longe e dissera. Meu Deus, o que houve com as galinhas desse mundo que não vêm mais ciscar... E o olhar perdido muito tempo.
Salu entendera a bisavó, tentara explicar. Mas seu linguajar de aprendiz era muito pouco para argumentar que bisa tinha saudade das galinhas no terreiro.
Olhava com ternura, cantava cantigas. Catava o arroz que caía nos cabelos das bonecas. A mulher menina e a antiga mulher brincavam apesar do mundo.
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A velha memória
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