Privacidade pública

Written By Ana Claudia Gomes on sábado, 11 de março de 2017 | 02:23

O declínio do homem público, obra de Richard Sennet basilar na minha formação, foi escrita ainda no clima do século vinte ocidental e trazia angústias muito próprias da sociedade burguesa. Ela, que se tinha formado pela atuação de seus protagonistas na esfera pública, de repente via no seu ideal de privacidade também o horror da atuação pública. A rejeição ao desempenho de papeis sociais. O sonho do lar como único lugar onde se poderia viver uma autenticidade pessoal. A busca do refúgio íntimo. O abandono da política. Entre outros fenômenos correlatos.
Só algumas décadas se passaram desde o debate de Sennet. Debate polêmico, rechaçado por muitos, com críticas aos pressupostos e ao método. Eu gostei da obra. Sempre a recordo quando vejo transeuntes apressados nas praças e mesmo o sumiço das praças. Quando vejo as pessoas sentadas em restaurantes, silenciosas, a teclar em seus espelhinhos eletrônicos. Espelho, espelho meu, quem será mais bonito do que eu.
Agora a privacidade se tornou uma coisa pública. As preferências e as tragédias pessoais são objetos do maior interesse nas novelas, nos jornais populares e especialmente na nuvem. Esse novo museu onde a memória de nossas irrisórias vidas vem sendo impressa dia-a-dia. O que comemos e por onde viajamos é mais observado do que quaisquer ideias que compartilhemos sobre o mundo ou que desejemos para todos nós juntos.
No limite, já não podemos garantir se o que publicamos sobre nós é o que somos e pensamos ou o que gostaríamos de pensar ou ser. Ou ainda o que gostariam de ver sobre nós.
E, para além, já não podemos garantir se o que foi publicado em nosso nome foi mesmo de nossa autoria ou de um hacker.
SHARE

0 comentários :

Postar um comentário