O cozido

Written By Ana Claudia Gomes on domingo, 13 de novembro de 2016 | 12:03

Conceição era a trabalhadora doméstica de minha família na bahiana Santo Amaro. Negra, alta, magra na medida, uns olhos esbugalhados faróis, uns belos beiços, cabelo puxado com coque na nuca. Elegantésima do alto de sua majestade, composta ao modo evangélico, via-se inteligência em cada ato.
Adorávamos seu cozido. Aquela mistura de todo legume com carne barata, da qual se fazia um babéttico pirão. Quando lambíamos os beiços, ela dizia em seu grave contralto. Vocês precisam ver isso num panelão. A familiada toda comendo. Vão lá um domingo...
Demorou anos. Um dia minha mãe nos conduziu à experiência de um poeirento ônibus. E fomos parar nas remotas fronteiras da cidade.
Os sobrados iam rareando. As casas iam ficando baixinhas. Descemos do ônibus e atravessamos um terrão vermelho até uma comprida faixa de casinhas de telhas feitas nas coxas. Só parede meia. Só parede meia.
Conceição veio sorriso nos receber. A casa lotada. Comprida, um cômodo após o outro e aquele cheiro que a tudo incensava.
Fomos apresentados com honras, tomamos fria água de moringa e Conceição convidou ao panelão. Olhei. Aquele absurdo. Batata doce e inglesa, cenoura, inhame, mandioca, abóbora, quiabo. Era sem fim. Nem havia fome para tanto.
Comecei por dois amados maxixes. Acrescentei um ou outro legume, arroz. E me assoberbei no pirão. Fã que sempre fui dos caldos.
Uma iguaria dos deuses. Jamais poderei repetir. Numa casinha senzala onde a pobreza de muitos virou a riqueza de todos. No comer. Comunhão.
SHARE

0 comentários :

Postar um comentário