Eliane era uma meninazinha migrada no sul do Brasil. Ela com sua família, Dona Consola, Seu Francisco e Dudu, irmãozinho caçula. Loiro, olhos da cor de esmeraldas, tão diferente dela como a lua do sol. Mas os pais eram assim opostos também. Seu Francisco negro pixaim. Calças brancas, cordão de ouro. Dona Consola branquinha, longos cabelos negros, mais das vezes presos num estiloso coque. Saias godê marcando fina cintura e generosos quadris.
Estavam ali temporariamente, com algumas centenas de outras famílias trazidas de várias regiões do país. Um caldeirão de brasis para rasgar nova estrada de asfalto.
Moravam na vila construída pela empreiteira, para evitar o ir-e-vir dos operários entre o canteiro de obras e a cidade mais próxima. Que era bem longe. As casas de madeira pintada em verde-claro tinham assoalhos de compridas tábuas. Geralmente encerados ao modo de espelho. Pois já havia enceradeira de duas escovas. E porão onde se guardava a lenha. Lugar também bom pra brincar.
Ruas largas, igreja, mercearia. Para se comprar fiado meses a fio. E pagar quando a Gata acertasse o atrasado. Pois era líquido e certo. Assim Eliane ganhou sua primeira sombrinha. E Dudu um chocalho de três esferas.
De escola, Eliane não se lembra. Era muito pequenina. Mas tinha o parquinho de areia, onde aprendera a andar. Onde Dudu tomava sol no carrinho.
Como esse tipo de obra podia durar vários anos, as famílias procuravam adaptar as casas da vila ao seu gosto. Ou costume de origem. Umas faziam jardins com baixas cercas brancas. Outras não. Havia quem fizesse um novo quarto. Tendo assim o das meninas e o dos meninos. Algumas tinham suas criações. E delas um ovo. Um toucinho. Até mesmo leite. Ou uma horta com cebolinha e erva-cidreira.
Dona Consola fez um bom puxado de madeira aos fundos. A fim de ter uma grande cozinha à moda da terra natal. Com o dobro da metragem dos cômodos tradicionais. Uma cozinha-sala.
Seu Francisco chegava às dezenove e ia primeiro ver o querido caçula. Por quem muito esperara e que dormia feito um anjo às horas primeiras da noite. Então sentava à mesa da copa, antiga cozinha, tirava as botas e se servia de sua cachacinha. Da qual deixava um tiquim no fundo do copo para Eliane. Talvez por isso hoje uma apreciadora.
Até que Dona Consola anunciasse o fim do recreio para a hora sagrada: arroz, feijão, bife e muita verdura. Tudo de primeira. Seu Francisco fazia questão.
A casa na vila era linda de se viver. Já se viu. Mas Eliane adorava a rua, a praça, o porão. Onde reunia as amiguinhas, cada qual com seus brinquedos. Para montar ampla e equipada casa das bonecas.
Eliane se vestia especialmente para as tardes boas de brincar. Aquelas em que não nevava. Vestido rosa de mangas fofas. Azul-marinho com rendinhas brancas. Assim querendo empurrar o ponteiro do relógio. Até as quinze britânicas horas de Dona Consola.
Um dia deu hora de Eliane encontrar as coleguinhas. Mas Dona Consola banhava Dudu. Espera, Eliane. Eu tenho que secar e vestir o seu irmão.
Eliane atacou de impaciência. Era muito frufru. Talco da Avon, pomada hidratante, meia com bolinha pendurada, botinha, fralda, calça plástica, macacão, manta, vira-manta, touca. Santo Deus. Tudo bem que o lugar era frio. Mas a meninas esperavam no portão.
Arrastou devagarinho uma cadeira até a porta fechada à taramela. Não percebeu que havia um vão entre a parede e o chão na altura da porta. Um dos pés da cadeira ali se encaixou.
Foi Eliane subir e abrir a taramela que tudo rodou. A porta se abriu sob o impacto da cadeira. Eliane rolou com ela escada abaixo até cair sobre a galinha Pintadinha com seus pintinhos. Pois Dona Consola bem gostava de ovo-caipira.
Como não havia cerca, a danada da Pintadinha conseguira chocar uma ninhada. Era daquelas bravas a Pintadinha. Parecia mesmo com Eliane, que gritava. Mãe. A galinha está bicando minha cabeça.
Dona Consola largou Dudu com a água do banho e foi salvar Eliane das bicadas da galinha. Sorte era que Dudu já sentava com as mãos atarraxadas às beiradas da banheira. Que virou bem quando voltava esbaforida Dona Consola.
Deu tempo de pegar Dudu no ar. Salvaram-se todos. Dona Consola primeiro sussurrou canções-de-ninar para Dudu. Depois ralhou com Eliane. Você bem que mereceu aquelas bicadas. Esperar um cadinho não mata ninguém.
Ficou de cama, Eliane. Mimada. Ganhando chazinho e mingau. Seu Francisco, ao chegar, andava do berço à cama-de-campanha. Velando a saúde e alegria de ambos os filhos.
Mesmo assim, ao cafuné de Dona Consola. Eliane foi capaz de perguntar. Mãe. Você pode me pintar de branco pra eu ficar igual ao meu irmão?
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