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O professor de Moral e Cívica

Written By Ana Claudia Gomes on segunda-feira, 19 de setembro de 2016 | 18:16

Alvoreciam os anos oitenta em minha querida e saudosa Bahia. Toda manhã, eu fazia uma longa caminhada até a escola privada onde me matricularam meus pais. Ao custo de seu lazer e de outros sempre adiados prazeres. Queriam eles me dar a melhor escola. Para que mais tarde eu não repetisse a história de agruras pela qual vinham passando.
Vale dizer. Enquanto forem privadas as melhores escolas, as oportunidades serão desiguais.
Toda manhã, meu olhar se demorava no cartaz do cinema local. Já naquela época, filmes me pareciam sinônimos de paraísos. Eu ainda não havia pensado que A Lagoa Azul era apenas mais um ensaio para a cegueira.
Toda manhã, eu passava em frente à casa de Maria do Rosário e tinha saudades. Ela tinha permanecido na escola pública, órfã, adotiva, cabelo pixaim. O muro baixo, a grade verde, as rosas, a bicicleta. Adeus, amiga.
Toda manhã, eu temia a Matemática. Pela qual só passava via Conselho de Classe. O próprio Professor João uma vez esclarecera à minha galerinha por que eu passava: porque ninguém pode ser bom em tudo. Salve, Professor João. A inclusão teve seus precursores antes mesmo de ser nomeada.
Mas não era só estudante que passava aperto na escola privada. Também professores. Especialmente seu Antônio, já idoso, às vésperas da aposentadoria. Era o professor de Moral e Cívica.
Ninguém sabia para que servia aquela matéria. E muitos se aproveitavam disso para azucrinar o pobre professor. Que raramente conseguia falar à classe inteira. Embora nunca tenha desistido. Chegava sempre educado, sorridente, com os devidos cumprimentos. Para encontrar em branco os deveres de casa. E não ser ouvido no que tinha a dizer.
Vez em quando, os garotos da classe combinavam: hoje ninguém faz zoeira. Vamos surpreender seu Antônio.
E foi numa dessas silenciosas aulas fake que seu Antônio nos falou da ditadura vigente. Agora já está até muito bom. Disse ele. Há alguns anos atrás, havia um dispositivo de escuta das minhas aulas. O diretor era encarregado de ouvir as gravações, para evitar que ensinássemos aos estudantes o que hoje vou ensinar a vocês.
Então falou por que éramos governados por generais e marechais. Explicou por que o desfile de sete de setembro valia tanto ponto. Esclareceu finalmente por que existia a famigerada Moral e Cívica. Todos aprendemos. Todos sentimos empatia por nosso professor.
Até mesmo Adailton, l'enfant terrible, que na aula seguinte comandou: hoje não vamos dar sossego ao seu Antônio. E bem no meio da primeira frase do mestre, Adailton levantou a mão. Sendo autorizado a expressar sua dúvida, meu colega interrogou. Professor, o que é pederasta.
Seu Antônio ficou muito vermelho. Acho que decorreram alguns segundos até que ele conseguisse falar. Pederasta é o homem que gosta de outro homem.
Os meninos da classe faltaram pôr os bofes pra fora, de tanto rir. Eu e outras meninas ficamos com cara de tacho. Não entendemos a pergunta do Adailton, se a aula era para traduzir o Hino Nacional.
Creio ter sido essa a ocasião em que eu soube da existência de pederastas no mundo. Antes disso já ouvira e repetira a palavra viado, para horror dos ouvidos de meu pai. Mas eu pensava que era apenas um xingamento. O que já seria muito.
Hoje, lembrando a postura de seu Antônio, entendo que Adailton e seus asseclas estavam julgando ser o professor um pederasta.
Que me importa. É com a memória dos ensinamentos de seu Antônio que hoje expliquei a um jovem amigo por que sumiu a obrigatoriedade dos desfiles de sete de setembro. Ao menos por ora, é claro que emendei. Porque tenho ouvido fanfarras no Brasil, e está longe o dia da pátria. Que eu preferiria frátria.
A moral se ensina pelo exemplo. Razão pela qual não creio que estejamos em bom momento para ensiná-la.

O civismo se ensina pelo desenvolvimento da cidadania. Só um povo livre e soberano em seu país pode cultivar a civilidade.
Meus respeitos, seu Antônio. Cheguei a ver alvorecer um Brasil em que a sua eventual orientação sexual não o exporia ao ridículo da classe.
Não tenho certeza de que o sol desse Brasil chegará ao zênite. Mas qualquer tiquinho de liberdade que uma pessoa tenha tido a moverá para sempre.
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