Em tempos de cultura como espetáculo e de cidades protagonistas, é possível viver a experiência conduzida de uma virada cultural. Um movimento de rotação da Terra inteirinho para culturas de palco, distração, contestação. Fenômeno de muitas faces, difícil narrar ou descrever. Das experiências na cultura, o que se pode compartilhar são impressões.
Na virada de Belo Horizonte, tive uma visão de futuro-passado. Ver de novo a tradicional brincadeira com carrinhos de rolimã. Já a tendo assistido muitas vezes em sua forma tradicional e desejado praticá-la, para o que me faltou coragem.
Era uma avenida larga e asfaltada, da qual se destacou um pedaço, com trincheiras de pneus. O som das rodinhas, a imagem das manobras, os riscos regulares no chão, um recuo no tempo. Voltei às ruas de uma distante Bahia, e não só às rolimãs, mas também aos parangolés e às espadas juninas, às bolinhas de gude, às crianças na rua. Impossível não ter simpatia e nostalgia.
Mas no meio do caminho tinha uma pedra. Um menino branquinho, cabelos pretos, lisos e luminosos, sentado na calçada ao lado do pai, olhar de tédio. Olhava uns poucos brincantes, os adultos mais entusiasmados que as crianças. Talvez fosse melhor dizer os crianças, pois não vi meninas.
O tédio do menino desandou pensamentos. O primeiro deles, a lembrança de Michel de Certeau, com sua reflexão "A beleza do morto". Nela, o estudioso classifica o folclore como a revivescência controlada das culturas do povo, quando elas já não ameaçam ninguém. Encontram-se no passado. Morreram.
Os carrinhos de rolimã feitos à mão, emendados com borrachas, precários, expressivos, não estavam na virada. Parece que agora são feitos pela indústria, com assentos anatômicos. Brincar em seu dorso tornou-se uma prática higienizada, devidamente acompanhada de capacetes, luvas e demais indumentárias desportivas. Não mais os meninos de calção, descalços, morenos, artesãos e ases das rolimãs.
Uma infraestrutura é especialmente montada e há organizações dedicadas ao cultivo do simulacro das rolimãs. Uma atualização para público pequeno e seleto, com pouca experiência em brincadeiras de rua. Pois agora também é um tempo de veículos velozes e furiosos nas ruas. Veículos produzidos pelas mesmas indústrias que apõem suas marcas nos carrinhos de rolimã.
Também, talvez pensem os familiares que as brincadeiras de rua fariam bem às suas crianças Estas muito mais interessadas na vida digital. Não seria nostalgia nossa, dos familiares?
Segui adiante, eu toda um combate entre visão e memória. Então vi uns rapazes negros com skates. Não é preciso ingenuidade. Skates também dão crônicas. Entretanto, não creio que meu menino entediado, aquele que vi ou imaginei, sentisse tédio diante do outro espetáculo, o dos skates, esse ainda vivo. Inclusive porque é compatível com o espetáculo dos demais veículos velozes nas ruas.
Também, talvez pensem os familiares que as brincadeiras de rua fariam bem às suas crianças Estas muito mais interessadas na vida digital. Não seria nostalgia nossa, dos familiares?
Segui adiante, eu toda um combate entre visão e memória. Então vi uns rapazes negros com skates. Não é preciso ingenuidade. Skates também dão crônicas. Entretanto, não creio que meu menino entediado, aquele que vi ou imaginei, sentisse tédio diante do outro espetáculo, o dos skates, esse ainda vivo. Inclusive porque é compatível com o espetáculo dos demais veículos velozes nas ruas.
Os rapazes no túnel só me disseram: olha a frente! E passaram como coriscos, com risco, expressão e política. Sendo seus veículos e indumentárias também produzidos pela indústria e suas práticas previstas nos protocolos do consumo.
(Viagens a Beagá)
Belezura de reflexão! Valeu por tê-la vivido, em parte, junto com a autora.
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