Efeito Pinduca

Written By Ana Claudia Gomes on terça-feira, 5 de julho de 2016 | 03:11


Viralizou nas redes virtuais um vídeo protagonizado pelo deputado destas Minas, o excelentíssimo senhor Pinduca. Isso de viralizar pode muito bem ser uma faca de dois legumes. A repetição ad nauseam do fato interfere na profundidade do debate.
O efeito Pinduca não é só de cá. Mas falando daqui, a gente fala de muitos mundos. Assim dizem os que pensaram estas Minas.
Gostei de assistir ao vídeo. Não por ver o deputado fraquejar diante das letras. Mas por ouvi-lo dizer: o que interessa é que estou aqui.
Sim. Isso é de sumo interesse. Porque a democracia ter reconhecido o direito de voto dos analfabetos fez com que eles eventualmente furassem certos bloqueios. Sendo óbvio que podem votar, por que não podem governar? Eles falam por muitos. Só quem teve um doente sabe o valor de uma ambulância.
Não há dúvida, nossa democracia ainda tem de caminhar mais. Porque ela se riu ao tropeçar o deputado na leitura. Assim como se riu de um seu presidente quase sem letras. E que falava por milhões.
Quem na polis conheça os segredos de ler saberá em que altura de sua alfabetização Pinduca precisou parar. E quão poucos passos faltavam para que ele não fosse figura do riso público na arena democrática. E quão difícil é caminhar esses passos sendo negro, de família pobre, necessitando trabalhar, coisas assim.
O riso então é catarse. É carnavalizar aquilo que em nós dói. Esse riso é um dos alicerces da nossa cultura.
A democracia se riu de ter deixado chegar um analfabeto ao Parlamento quiçá porque assim trabalhe a dor de que tantos compatriotas estejam sendo deixados sem letras.
Lamento, mas confesso haver compatriotas convencidos da ideia de que Pinduca não tem letras porque não quis estudar. Ou porque adquirir letras dependa de uma propensão especial, uma espécie de dom divino. Essa também é uma forma de desvencilhar-se da dor. Só que já não tão saudável. Não constrói. Considera o fracasso do indivíduo algo de sua índole, pois não correu o suficiente atrás do bom.
O bom. O que é mesmo que é?
Numa cultura em que as letras são tão importantes para registrar o que a humana idade sabe... Como pode que tantos não possam decifrar as letras? Já sonhamos letras para todos desde o Iluminismo. Ora.
Acaso o sonho acabou? Que todos possam ler? E, enquanto isso, que sejamos democráticos com quem não saiba ler?
O discurso do deputado é um tapa na cara da sociedade, como diria um dileto amigo. Os muito críticos o veem cooptado pelos senhores capa-preta, filhos dos filhos dos filhos dos nossos mais antigos capa-preta. Parece hipotecar-lhes seus votos, pois não detém as letras, embora, sim, detenha muitos votos.
Esquece a democracia que o seu deputado também utiliza um procedimento usual em muitos segmentos da cultura do povo. Que é jogar com todos os senhores capa-preta do momento, ao invés de simplesmente ser vassalo de um. Mesmo que perdendo o jogo a três por quatro.
O efeito Pinduca tem desequilibrado o sempre distante equilíbrio de poder entre os senhores capa-preta das Minas. Pois está na posição de definir, com votos, qual senhor vai ganhar. Ou se certos senhores terão de se unir.
A sua posição de sujeito no jogo raramente é reconhecida por nós que achamos importante falar bonito.
Vamos combinar, contudo. Quem não sabe ler é importante para a política dos mundos. Interessa estar no Parlamento para que o analfabetismo de nossos cidadãos seja dito diante de nossas câmeras. E para que falem o que têm a dizer os analfabetos.
Viralizou também o uso pelo deputado da palavra inconha, referida a sua mulher. E a imagem de que ela circulava altiva pelo salão.
Inconha não pareceu se incomodar. Talvez porque a senhora saiba mais de desigualdade de gênero do que de democracia. Ou então pode ter ouvido a senhora o tom, a inflexão na voz do marido.
Ainda que analfabeto em códigos de gênero, esses também fulcrais em democracias, como o das letras, o deputado deu especial tratamento à palavra inconha. Imprimiu-lhe um acento oral típico das expressões de carinho aqui no código de tons de voz das Minas Gerais.
Para quem não domina o código de letras, é bom que domine ao menos um código de tons de voz. Questão de sobrevivência. Sendo falar uma questão de sobrevivência pois instaura esperança de liberdade.
Assim como é radical e necessário que não haja fome, é radical e necessário que não haja insuficiência de letras. Porque a nossa fome não é só de legumes. É de diversão e arte.
Reparai no estilo do deputado. Um nosso modo de ostentação, de décadas atrás, é o que tem o deputado como modo de ostentação hoje. A muitos não parece sequer retrô. Parece bom para o riso. E assim o deputado tem insuficiência também dessa linguagem de elite. O paramentar-se para se distinguir de quem é pobre. Considerado por muitos arte.
É aquela história. Falemos agora ou nos calemos para sempre. O efeito Pinduca pode definir os rumos de uma polis com quinhentas mil almas, aqui nas Minas Gerais. E pode mais.
Se não quer a democracia que analfabetos definam seus rumos, ora. Que não tenha analfabetismo. Muito menos fome.

Fonte da imagem: noticiasdomatogrosso.com.br (acesso em 05/07/2016).
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2 comentários :

  1. Realmente, eu não havia pensado por esse viés: é tema para uma boa reflexão...
    Contudo reafirmo minha total discordância da política posta em prática por esse senhor!

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