Viralizou nas redes virtuais um vídeo protagonizado pelo deputado
destas Minas, o excelentíssimo senhor Pinduca. Isso de viralizar pode muito bem
ser uma faca de dois legumes. A repetição ad nauseam do fato interfere na
profundidade do debate.
O efeito Pinduca não é só de cá. Mas falando daqui, a gente fala de
muitos mundos. Assim dizem os que pensaram estas Minas.
Gostei de assistir ao vídeo. Não por ver o deputado fraquejar
diante das letras. Mas por ouvi-lo dizer: o que interessa é que estou aqui.
Sim. Isso é de sumo interesse. Porque a democracia
ter reconhecido o direito de voto dos analfabetos fez com que eles eventualmente
furassem certos bloqueios. Sendo óbvio que podem votar, por que não podem
governar? Eles falam por muitos. Só quem teve um doente sabe o valor de uma
ambulância.
Não há dúvida, nossa democracia ainda tem de caminhar mais. Porque ela
se riu ao tropeçar o deputado na leitura. Assim como se riu de um seu
presidente quase sem letras. E que falava por milhões.
Quem na polis conheça os segredos de ler saberá em que altura de
sua alfabetização Pinduca precisou parar. E quão poucos passos faltavam para
que ele não fosse figura do riso público na arena democrática. E quão
difícil é caminhar esses passos sendo negro, de família pobre, necessitando
trabalhar, coisas assim.
O riso então é catarse. É carnavalizar aquilo que em nós dói. Esse
riso é um dos alicerces da nossa cultura.
A democracia se riu de ter deixado chegar um analfabeto ao
Parlamento quiçá porque assim trabalhe a dor de que tantos compatriotas estejam
sendo deixados sem letras.
Lamento, mas confesso haver compatriotas convencidos da ideia de que
Pinduca não tem letras porque não quis estudar. Ou porque adquirir letras
dependa de uma propensão especial, uma espécie de dom divino. Essa também é uma
forma de desvencilhar-se da dor. Só que já não tão saudável. Não constrói.
Considera o fracasso do indivíduo algo de sua índole, pois não correu o
suficiente atrás do bom.
O bom. O que é mesmo que é?
Numa cultura em que as letras são tão importantes para registrar o
que a humana idade sabe... Como pode que tantos não possam decifrar as letras? Já sonhamos letras para todos desde o Iluminismo. Ora.
Acaso o sonho acabou? Que todos possam
ler? E, enquanto isso, que sejamos democráticos com quem não saiba ler?
O discurso do deputado é um tapa na cara da sociedade, como diria um dileto amigo. Os muito críticos o veem cooptado pelos senhores
capa-preta, filhos dos filhos dos filhos dos nossos mais antigos capa-preta.
Parece hipotecar-lhes seus votos, pois não detém as letras, embora, sim,
detenha muitos votos.
Esquece a democracia que o seu deputado também utiliza um procedimento
usual em muitos segmentos da cultura do povo. Que é jogar com todos os senhores
capa-preta do momento, ao invés de simplesmente ser vassalo de um. Mesmo que perdendo o jogo a três por quatro.
O efeito Pinduca tem desequilibrado o sempre distante equilíbrio
de poder entre os senhores capa-preta das Minas. Pois está na posição de
definir, com votos, qual senhor vai ganhar. Ou se certos senhores terão de se
unir.
A sua posição de sujeito no jogo raramente é reconhecida por nós
que achamos importante falar bonito.
Vamos combinar, contudo. Quem não sabe ler é importante para a
política dos mundos. Interessa estar no Parlamento para que o analfabetismo de
nossos cidadãos seja dito diante de nossas câmeras. E para que falem o que têm a dizer os analfabetos.
Viralizou também o uso pelo deputado da palavra inconha, referida
a sua mulher. E a imagem de que ela circulava altiva pelo salão.
Inconha não pareceu se incomodar. Talvez porque a senhora saiba mais
de desigualdade de gênero do que de democracia. Ou então pode ter ouvido a
senhora o tom, a inflexão na voz do marido.
Ainda que analfabeto em códigos de gênero, esses também fulcrais em democracias, como o das letras, o deputado deu especial tratamento à palavra inconha. Imprimiu-lhe um acento
oral típico das expressões de carinho aqui no código de tons de voz das Minas
Gerais.
Para quem não domina o código de letras, é bom que domine ao menos
um código de tons de voz. Questão de sobrevivência. Sendo falar uma questão de sobrevivência pois instaura esperança de liberdade.
Assim como é radical e necessário que não haja fome, é radical e
necessário que não haja insuficiência de letras. Porque a nossa fome não é só
de legumes. É de diversão e arte.
Reparai no estilo do deputado. Um nosso modo de ostentação, de décadas
atrás, é o que tem o deputado como modo de ostentação hoje. A muitos não parece
sequer retrô. Parece bom para o riso. E assim o deputado tem insuficiência também
dessa linguagem de elite. O paramentar-se para se distinguir de quem é pobre.
Considerado por muitos arte.
É aquela história. Falemos agora ou nos calemos para sempre. O
efeito Pinduca pode definir os rumos de uma polis com quinhentas mil almas, aqui
nas Minas Gerais. E pode mais.
Se não quer a democracia que analfabetos definam seus rumos, ora. Que
não tenha analfabetismo. Muito menos fome.Fonte da imagem: noticiasdomatogrosso.com.br (acesso em 05/07/2016).
Realmente, eu não havia pensado por esse viés: é tema para uma boa reflexão...
ResponderExcluirContudo reafirmo minha total discordância da política posta em prática por esse senhor!
Temos consenso, respeitável César.
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