Vermes na loja de comer

Written By Ana Claudia Gomes on segunda-feira, 25 de abril de 2016 | 17:12


Aquele parecia um domingo tedioso. Peguei minha vassoura, depois de cuidar do jardim, e fui flutuando nela, visitar a cidade. Havia cinco anos eu não ia lá. No máximo voava sobre as florestas e vilas próximas. A cidade era bem longe.
Sim, havia muitas mudanças. Decidi parar diante de um novo restaurante, com fachadas envidraçadas, emolduradas em madeira. Bom. Lugar público onde eu podia ver muitas pessoas. Talvez encontrar algum conhecido.
Entrei voando sobre as cabeças, com cuidado. Aterrissei, andei com a vassoura pelos corredores. Escolhi lugar onde sentar. Uma mesa onde almoçavam duas simpáticas velhas e um rapaz de seus cinquenta anos. Pensei que apreciar o momento em mesa de gente mais próxima da minha idade poderia ser agradável. Aproveitei que a quarta cadeira da mesa estava puxada como a esperar mais alguém para o almoço. Deu pra acomodar minhas fartas saias.
Havia silêncio na mesa. Todos concentrados em seus pratos. Percebi que uma das senhoras usava uma tintura cinza-azulada em seus finos cabelos. Senti saudades de jamais ter cuidado de cabelos. Nunca tive tempo mesmo... Elas estavam cuidadosamente vestidas, com joias delicadas, e o rapaz, que era custoso ver ou apreciar, pois estava ao meu lado, fazia mais ruídos do que as companheiras de almoço.
Delas, levei os olhos para passear nas outras mesas. Comecei a estranhar que todos tivessem pele mais ou menos branquinha, que todos almoçassem silenciosamente e se retirassem logo após. Vi que havia dois televisores bem grandes, com tela plana. Mas não havia som, apenas imagens. Olhei para o cantor, logo à minha frente, à esquerda. Observei que cantava baixo, de forma que não incomodava cada um que fazia sua refeição. Mas alto, de forma que não era possível ninguém conversar. Que sua voz parecia de uma simpatia extrema, que não incomodasse ninguém. Que seu trabalho era não parecer incômodo.
Deixei a mesa, fui ver melhor. A comida era servida ao modo que eles chamam self service. Um longo balcão com fôrmas retangulares contém a comida. Há vários tipos de saladas, de arroz, inclusive doce, de carnes, de batatas, de massas. Há carnes assadas também. As pessoas pesam seus pratos e recebem uma etiqueta com o preço, como pude observar na mesa de meus comensais preferidos depois.
Tive vontade de comer. Mas como estava invisível, previ que as pessoas estranhariam vendo um prato voando pelo salão, ao longo do balcão e depois até à máquina de pesar.
Fui olhar a cozinha. Quantos panelões e fumaças, funcionários bem atarefados, ingredientes sobre uma longa bancada onde eram preparados para serem levados aos fogões. Um filé de salmão recebia a visita de algumas moscas. Não deu pra distinguir o cheiro de nenhum prato em especial. As carnes, sim, seu cheiro geral dominava o ambiente.
Voltei à mesa de meus ignotos companheiros. Observei a família vizinha. A mãe, tão magra e bela, mãos e pés tão fininhos e alvos, não pareciam ter pisado a terra recentemente. Vi mesmo, em meu sobrevôo, que quase não há mais quintais. No máximo canteirinhos atapetados com grama esmeralda e cercados de pedra São Tomé. E muitos novos prédios de apartamentos. Penso em meu amplo quintal sem vizinhos. Como pode essa gente viver em gaiolas?
De repente o rapaz, meu vizinho na mesa, jogou repentinamente seu prato para cima com tanta força, que a comida voou e o prato espatifou no alto teto. Foi aquela chuva de grãos, folhas e estilhaços. Mas, antes, o rapaz gritara furiosamente: isso aqui não é a Palavra de Deus! É um prato de vermes!!
Vi que seus olhos estavam fixos. Uma balbúrdia começou imediatamente ao redor. Pessoas tinham pontos de sangue onde lhes atingiram os estilhaços. Garçons e funcionários da limpeza surgiam de todas as partes, para recolher, limpar, pedir desculpas, solicitar que os clientes fizessem novos pratos. Mas as pessoas fugiam com horror e algumas questionavam se deviam pagar.
Minhas companheiras senhoras estavam compungidas. Aquela que se revelou ser a mãe do rapaz pronunciava, com a mão à boca: mais um ataque, não, meu filho! E sua vizinha, talvez irmã, comentava baixinho: mãe sofre...
O rapaz sentou-se em sua cadeira como se não estivesse cercado por sua própria sujeira e começou a vociferar um discurso: você não vê, mãe? Aqui não se almoça. Aqui se come. Tudo parece gostoso, mas todos os gostos são iguais! Eu prefiro seu arroz com serralha. 
A mãe, baixinho, tentava acalmar o filho: meu filho, não temos a Fátima aos domingos. Você sabe que eu não aguento mais cozinhar!
Mãe, isso aqui é uma ponta de estoque. A gente come como se estivesse no refeitório do trabalho ou da prisão. Sinto-me num aquário, mãe! Todos nos vêem e esses vidros todos... Só faltam as pedrinhas e as plantinhas aquáticas.
Não podemos conversar, pois só gritando sobre a música, mãe! Isso aqui parece uma linha de produção de pessoas alimentadas. Entra um, sai outro. Para conseguir mastigar essas coisas indefinidas que estavam no meu prato, comecei a imaginar que estava lendo a Bíblia. De repente, as letras foram se transformando em vermes e se moviam sobre as páginas, mãe! Me tira daqui, mãe!
Foi mesmo o tempo justo para que o gerente chegasse um tanto avermelhado à mesa, a fim de agradecer a presença da família e anunciar que não precisavam pagar as despesas, pois o rapaz parecia evidentemente transtornado.
Saíram os três enquanto eu observava em pé, para que não ficassem em minhas roupas, como a flutuar no ar, grãos de arroz e pedacinhos de agrião. Que rapaz perspicaz, pensei eu. Que descrição do restaurante!

Decidi voltar para casa e mexer minha sopa de ossos no caldeirão. Coloquei um galhinho de alecrim. Estava mesmo saboroso, embora eu nunca tivesse sabido cozinhar bem. Eram outras minhas alquimias.
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