Aquele parecia um domingo tedioso. Peguei minha vassoura,
depois de cuidar do jardim, e fui flutuando nela, visitar a cidade. Havia cinco
anos eu não ia lá. No máximo voava sobre as florestas e vilas próximas. A cidade
era bem longe.
Sim, havia muitas mudanças. Decidi parar diante de um novo
restaurante, com fachadas envidraçadas, emolduradas em madeira. Bom. Lugar
público onde eu podia ver muitas pessoas. Talvez encontrar algum conhecido.
Entrei voando sobre as cabeças, com cuidado. Aterrissei,
andei com a vassoura pelos corredores. Escolhi lugar onde sentar. Uma mesa onde
almoçavam duas simpáticas velhas e um rapaz de seus cinquenta anos. Pensei que
apreciar o momento em mesa de gente mais próxima da minha idade poderia ser
agradável. Aproveitei que a quarta cadeira da mesa estava puxada como a esperar
mais alguém para o almoço. Deu pra acomodar minhas fartas saias.
Havia silêncio na mesa. Todos concentrados em seus pratos.
Percebi que uma das senhoras usava uma tintura cinza-azulada em seus finos
cabelos. Senti saudades de jamais ter cuidado de cabelos. Nunca tive tempo
mesmo... Elas estavam cuidadosamente vestidas, com joias delicadas, e o rapaz,
que era custoso ver ou apreciar, pois estava ao meu lado, fazia mais ruídos do
que as companheiras de almoço.
Delas, levei os olhos para passear nas outras mesas.
Comecei a estranhar que todos tivessem pele mais ou menos branquinha, que todos
almoçassem silenciosamente e se retirassem logo após. Vi que havia dois
televisores bem grandes, com tela plana. Mas não havia som, apenas imagens.
Olhei para o cantor, logo à minha frente, à esquerda. Observei que cantava
baixo, de forma que não incomodava cada um que fazia sua refeição. Mas alto, de
forma que não era possível ninguém conversar. Que sua voz parecia de uma
simpatia extrema, que não incomodasse ninguém. Que seu trabalho era não parecer
incômodo.
Deixei a mesa, fui ver melhor. A comida era servida ao modo
que eles chamam self service. Um
longo balcão com fôrmas retangulares contém a comida. Há vários tipos de
saladas, de arroz, inclusive doce, de carnes, de batatas, de massas. Há carnes
assadas também. As pessoas pesam seus pratos e recebem uma etiqueta com o
preço, como pude observar na mesa de meus comensais preferidos depois.
Tive vontade de comer. Mas como estava invisível, previ que
as pessoas estranhariam vendo um prato voando pelo salão, ao longo do balcão e
depois até à máquina de pesar.
Fui olhar a cozinha. Quantos panelões e fumaças,
funcionários bem atarefados, ingredientes sobre uma longa bancada onde eram
preparados para serem levados aos fogões. Um filé de salmão recebia a visita de
algumas moscas. Não deu pra distinguir o cheiro de nenhum prato em especial. As
carnes, sim, seu cheiro geral dominava o ambiente.
Voltei à mesa de meus ignotos companheiros. Observei a
família vizinha. A mãe, tão magra e bela, mãos e pés tão fininhos e alvos, não
pareciam ter pisado a terra recentemente. Vi mesmo, em meu sobrevôo, que quase
não há mais quintais. No máximo canteirinhos atapetados com grama esmeralda e
cercados de pedra São Tomé. E muitos novos prédios de apartamentos. Penso em
meu amplo quintal sem vizinhos. Como pode essa gente viver em gaiolas?
De repente o rapaz, meu vizinho na mesa, jogou
repentinamente seu prato para cima com tanta força, que a comida voou e o prato
espatifou no alto teto. Foi aquela chuva de grãos, folhas e estilhaços. Mas,
antes, o rapaz gritara furiosamente: isso aqui não é a Palavra de Deus! É um
prato de vermes!!
Vi que seus olhos estavam fixos. Uma balbúrdia começou
imediatamente ao redor. Pessoas tinham pontos de sangue onde lhes atingiram os
estilhaços. Garçons e funcionários da limpeza surgiam de todas as partes, para
recolher, limpar, pedir desculpas, solicitar que os clientes fizessem novos
pratos. Mas as pessoas fugiam com horror e algumas questionavam se deviam
pagar.
Minhas companheiras senhoras estavam compungidas. Aquela
que se revelou ser a mãe do rapaz pronunciava, com a mão à boca: mais um
ataque, não, meu filho! E sua vizinha, talvez irmã, comentava baixinho: mãe
sofre...
O rapaz sentou-se em sua cadeira como se não estivesse
cercado por sua própria sujeira e começou a vociferar um discurso: você não vê,
mãe? Aqui não se almoça. Aqui se come. Tudo parece gostoso, mas todos os gostos
são iguais! Eu prefiro seu arroz com serralha.
A mãe, baixinho, tentava acalmar o filho: meu filho, não
temos a Fátima aos domingos. Você sabe que eu não aguento mais cozinhar!
Mãe, isso aqui é uma ponta de estoque. A gente come como se
estivesse no refeitório do trabalho ou da prisão. Sinto-me num aquário, mãe!
Todos nos vêem e esses vidros todos... Só faltam as pedrinhas e as plantinhas
aquáticas.
Não podemos conversar, pois só gritando sobre a música,
mãe! Isso aqui parece uma linha de produção de pessoas alimentadas. Entra um,
sai outro. Para conseguir mastigar essas coisas indefinidas que estavam no meu
prato, comecei a imaginar que estava lendo a Bíblia. De repente, as letras
foram se transformando em vermes e se moviam sobre as páginas, mãe! Me tira
daqui, mãe!
Foi mesmo o tempo justo para que o gerente chegasse um
tanto avermelhado à mesa, a fim de agradecer a presença da família e anunciar
que não precisavam pagar as despesas, pois o rapaz parecia evidentemente
transtornado.
Saíram os três enquanto eu observava em pé, para que não
ficassem em minhas roupas, como a flutuar no ar, grãos de arroz e pedacinhos de
agrião. Que rapaz perspicaz, pensei eu. Que descrição do restaurante!
Decidi voltar para casa e mexer minha sopa de ossos no
caldeirão. Coloquei um galhinho de alecrim. Estava mesmo saboroso, embora eu
nunca tivesse sabido cozinhar bem. Eram outras minhas alquimias.
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