O senhor do tempo

Written By Ana Claudia Gomes on quarta-feira, 30 de setembro de 2015 | 21:44

Passeava na grande cidade industrial. Começava a minha alimentação do dia. Um misto-quente e um café. Com menos proteína, por favor. E me sentei à janela do apertado setor de mesas. E suspirei por um pub. 
Olhei em volta. Pensando bem aqui é um pub. Abri meu livrinho e comecei a ler em voz alta. Quase declamando e pensando. Esse aqui vou ter de ler mais de uma vez. E ao pensar o ritmo. A entonação. Estou me perdendo do enredo. A forma se impõe. Como às vezes acontece a uma tela não figurativa. Depois devo atentar ao enredo.
Chegou a moça com o misto-quente. E enquanto ela preenchia a comanda senhor negão me abordou. Conversa vai conversa vem sou músico. 
Gravei um disco com músicos de toda essa gente famosa que a senhora conhece. Não tenho dinheiro não. É tudo por amizade, Agora vou gravar um disco com orquestra. E foi-se tomar o ônibus para a cidade vizinha.
Ficamos eu e senhor grisalho. Ex-companheiro de mesa do senhor negão. Olhamos um para o outro e achamos que era de bom tom conversar. Apresentamo-nos apois. 
Soube que ele tirou muita areia de um riacho da cidade. E com tal areia se construíra a mesma cidade. 
O córrego morreu, pois ele disse um córrego que tinha. Que passava. 
Cidade com muita ocorrência de homo sapiens costuma matar os riachos.
Então me perguntou meu vizinho de mesa se eu conhecia a letra de Fascinação. Canção cuja interpretação de Elis Regina nos faz pensar que ela também a compôs. Só que não. 
Segundo senhor grisalho é composição estrangeira. E vimos na internet que Armando Louzada deve ser o autor da versão brasileira. Essa hipótese é do senhor grisalho. 
Abri largo sorriso e disse eu sei a letra. Vou escrever para o senhor. Dê-me um guardanapo. Ah, é bom escrever em guardanapo! Em papel de pão então, nem se fala.
O senhor grisalho disse não. Eu vou chamar a garçonete Deixa eu me lembrar aqui seu nome. Agora dei para esquecer os nomes e uso uma técnica para lembrar. Aquela ali por exemplo é a Vera. Eu guardei o nome por causa da Vera Fischer. E riu.
Isso é mnemotécnica. Disse eu a ele pedantemente. Os antigos usavam técnicas de memória com muita frequência. Pois eles não tinham internet. Mas cá com meus botões eu ralhei comigo. Você também esquece os nomes. Nem sendo ainda grisalha.
Senhor grisalho chamou a Vera e pediu papel para eu escrever. Caneta eu tinha. Ela tentou se esquivar. Trabalhar em padaria não é mole. 
Disse ao senhor grisalho que só tinha o comprido e estreito papelzinho da comanda. Ao que ele disse não. Um papel ofício. Pegue l'embaixo com a Renata. 
Deve ter um setor administrativo aqui dentro. Pensei. Vera terá que descer ou subir escadas. Mas Fascinação merece. Não fossem os trabalhadores como Vera. Não teríamos as pirâmides no Egito.
Escrevi a letra de Fascinação no guardanapo mesmo. Depois passando a limpo no garboso papel ofício. Dedicada ao senhor grisalho. Duvidava de minha memória. Seriam mesmo só duas estrofes? Tão curta e tão linda,
Acessei a internet. Lenta qual fogão a lenha. Deu pra ver que são mesmo duas estrofes repetidas três vezes ao Elis cantar. E vi que minha memória me pregara duas peças. 
Então senhor grisalho retribuiu meu prazer ao fazer essa doçura que é copiar um belo poema. Contando tudo o que sabia sobre a canção.
Fiquei olhando e pensando É Cronos. Esse senhor tem tempo. Ele pode sentar enquanto correm rápidos transeuntes. Com uma outra pá de gente que pode tomar lentamente o seu café. Enquanto conversa. E é cadeira cativa na casa. 
E disse olha. Aqui é lugar muito bem frequentado. Venha mais. 
Saí triunfante. Qualquer café pode ser um pub. É a gente que sustenta a casa.
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