O livro dos espíritos

Written By Ana Claudia Gomes on quarta-feira, 18 de março de 2015 | 02:20

Maria tinha lacerada a sua alma. Ela via claramente o caminho à sua frente, mas este era estreito, pedregoso, íngreme e ladeado de espinheiros. As sandálias de Maria estavam gastas, sua pele coberta de fuligem, seus cabelos desgrenhados. Ela estava cansada de caminhar e ainda não vira o oásis.
Então, viu uma placa apontando um atalho: D. Ana. Simplesmente isso. Maria pensou: nessas alturas, não posso ignorar os sinais. Ana era a avó de Jesus. Na tradição, é apontada como a velha mestra, aquela que ensina a ler e a viver.
Maria tomou o atalho e, ao cruzar o portão, apenas cerrado por uma tramela, viu-se diante de uma grande obra humana: um jardim cuja imponência e perfume, cujas cores obrigavam a emudecer em prece. Qual canto do Uirapuru.
D. Ana apareceu com mãos sujas de terra, uma das quais segurava uma pá de jardim. Olhou Maria de cima a baixo, com olhos que atravessam e vêem lá, muito depois. Maria baixou os olhos e disfarçou: D. Ana, com sua licença. Venho de uma longa e atroz caminhada e preciso de remédio para meus pés feridos. Esse jardim, imagino, não há de ser em vão...
D. Ana pôs a pá de lado, paciente, mas firmemente, como quem diz: você não veio aqui à procura de jardim. Sentou-se, com as mãos cheias de terra, em uma velha cadeira, e apontou outra, a seu lado, para que Maria se assentasse. Esta entendeu: era uma ordem.
Então, sem que Maria nada perguntasse, D. Ana falou por duas horas. Como os velhos, algumas vezes repetiu histórias inteiras. E enfatizou repetidamente a moral da história.
Perdi minha mãe com apenas um ano, disse em tom sério, olhou para Maria profundamente, e seus lábios formavam uma linha reta, como fazem os mestres quando estão ensinando. Meu pai, posso dizer que não o tive. Porque ele queria que eu fosse homem. Os pais daquele tempo só queriam homens, que podiam trabalhar na roça mais cedo e não traziam netos para casa antes da hora. As mulheres tinham vindo ao mundo para servir. Aprendi isso praticamente no berço, que não tive.
Logo obtive uma madrasta. E como ela era mulher, oprimida, viu em mim e em minha recém-nascida irmã, cujo nascimento custara a vida de minha mãe, o seu império. Porque quem é muito oprimido geralmente encontra um ainda mais fraco para oprimir. Cedo aprendi que nada que eu fizesse para minha madrasta estaria certo. Eu errava todas. Aceitei.
Curioso é que meu pai continuou tendo apenas filhas... E contraiu uma grave doença, que lhe adveio de seus ancestrais e atingiu vários familiares próximos, inclusive a mim. Assim, vim parar aqui no atalho da curva, para viver escondida, em companhia de outros como eu.
Casei-me aos quatorze. Era vontade do meu pai. E vivi até os cinquenta e dois anos com meu marido, que era uma versão mais jovem do meu pai. Se eu conversava com mulher, era sapatão. Se conversava com homem, era Ricardão... D. Ana riu um riso em linha reta, porém seus olhos cintilaram.
Eu era completamente só. Quando criança, os meus aqui companheiros de infortúnio queriam que eu fosse à missa todo domingo. Eu me escondia sob o cobertor, para ver se me esqueciam, mas jamais fui esquecida. Meus companheiros aqui de infortúnio queriam que eu recebesse consolo. Mas a missa não me consolava. Ela nada dizia.
Não tive filhos. Graças a Deus. Fui amaldiçoada nisso também. E por isso recebi muitos açoites. De língua e de espada-de-são-jorge. Mas meu marido, que ninguém é de todo mau, tinha um livro numa mesinha da sala. Vez em quando, ele passava cuidadosamente o espanador no livro. Uma vozinha fraca, lá no fundo de mim, avisava que aquele livro poderia ser um alívio para os açoites. Mas eu não sabia ler. Na roça, menino já não ia à escola. Imagine menina.
Mas um dia, após o duro trabalho de sempre, sentei no sofá, dobrei os joelhos e comecei a folhear o livro. Quando meu marido cruzou o umbral da porta, que eu enfeitara com uma cortina de fitas coloridas, pensei: mais açoites. Mas ao ver o livro em minhas mãos, os olhos do meu marido suavizaram. Você não sabe ler, disse ele. O que procura neste livro que nem desenhos tem? Mantive o olhar, em trêmulo silêncio. Então ele disse: está bem, vou ensiná-la a ler.
Meu marido foi um duro professor. Ensinou o bê-a-bá e disse: você já tem a chave. Agora leia tudo o que encontrar pela frente: folhinha Mariana, bula de remédio, almanaque de farmácia. Leia tudo. É lendo que se aprende a ler. Mas esse livro aí que está na mesinha, respeite-o. É para ser lido por quem já sabe ler.
Sim, senhor, disse eu. Não, senhor, pensei. E me perguntei por que ele não me aconselhara a ler romances.
E quando ele saía para o trabalho, pois era acendedor de postes, eu enfrentava rápido meus afazeres, sentava no sofá, dobrava os joelhos e pegava o livro. O almanaque de farmácia ficava ao lado pois, a qualquer ruído, eu trocava um livro por outro. E passava o dedo por sobre cada linha, pois o livro de meu marido era muito difícil de ler.
Aos poucos fui lendo nele o consolo que esperavam me dar nas missas. Fui compreendendo por que não conhecera minha mãe. Por que não tivera pai. Por que meu marido era tal qual pai. Por que eu precisava cuidar carinhosamente da minha madrasta, embora eu não acertasse uma com ela. Por que eu padecia de tão terrível doença. Por que eu não tivera filhos. Por que eu nascera mulher. Fui compreendendo tudo, passando o dedo sobre cada linha.
Quando meu marido descobriu que eu lera o livro, eu já o sabia de trás para a frente. Ele não me açoitou, pois pensava que eu só o lera quando já sabia ler.
Meu marido entrou em colapso muito jovem. Teve uma longa agonia. E eu tratei suas chagas, umedeci seu lábios com água fresca, fiz-lhe sopas. E constantemente lembrava que no livro aprendera as razões de ser filha, enteada, mulher, esposa, oprimida e curandeira. Quando ele morreu, cerrei com melancólico alívio seus olhos e fui-lhe grata pelo livro. Sou-o, por toda a minha vida.
Eu era muito bela, minha filha. Por isso, os homens, qual enxame de zangões, queriam se casar comigo. Resisti bravamente. E isso significou passar fome. Um dia, dei uma de Scarlett O'Hara. Arranquei uma raiz do chão e a devorei com terra e tudo. Tinha gosto de leite e mel.
Minha filha, tive cinquenta anos de cativeiro. E agora já tenho mais de cinquenta anos de liberdade.
Maria deixou que as lágrimas transbordassem suavemente, secou-as com as costas das mãos, e finalmente disse da doença e do remédio que realmente a haviam levado até o atalho da curva. D. Ana, eu tenho um grande, um enorme amor. Mas preciso deixá-lo. Os olhos de D. Ana chisparam, mas com o fogo do olhar dos mestres. Ela sibilou: Maria, você não queira saber quem foi esse homem na sua vida. E manteve o olhar fixo em Maria. Esta arregalou seu grandes olhos negros, compreendendo perfeitamente: não, não quero saber.
D. Ana abrandou. Você tem que abaixar o nariz. Quebrar a crista. E riu, enquanto dirigia um severo mas terno olhar aos olhos negros de Maria. A voz saiu suave: você não quer quebrar a crista... Leia o livro, minha filha. Maria respondeu que sim, D. Ana, vou ler.
Maria levantou-se mais leve, pois o desejo do oásis se dissipara. D. Ana foi mãe: volte quando quiser. Eu estou sempre desocupada. E pegou sua pá de jardim. Maria atravessou de volta o atalho, alcançou a curva, e as visões se clareando: eu já li o livro, D. Ana. Já o li muitas vezes. Eu o li agora, enquanto a ouvia, D. Ana. Eu sei que devo abaixar o nariz para ocultá-lo, já que ele nasceu arrebitado. Eu sei que devo deixar quebrar a crista, pois ela é de penas, nasce de novo. E, segundo o livro, elas vão nascer prateadas, em alusão à sacralidade do feminino. Sim, D. Ana. Cinquenta anos de cativeiro, depois mais de cinquenta na liberdade. Vou baixar o nariz porque não quero baixar o nariz. Vou quebrar a crista porque não quero quebrar a crista. E vou ler de novo o livro.


SHARE

2 comentários :