Meidenusa já carregava o fardo da grafia do seu nome. Um escrivão purista levara ao pé-da-letra uma norma que aportuguesava os nomes próprios de inspiração estrangeira. Sua irmã um ano mais velha fora salva pelo gongo: seu nome ficara em inglês mesmo.
Para aprender a escrever seu nome na classe de alfabetização, Meidenusa teve acrescido seu fardo, pois a zombaria dos coleguinhas não dava trégua. Porém, como se não bastasse, foi também nessa época que ela foi acometida pelos piolhos. Sua mãe dizia que ela só podia ter sangue doce. E o pai vigiava para que nem um centímetro de suas longas e loiras madeixas fosse cortado.
O combate à praga era difícil naqueles tempos. Parece que havia um tal Neocid, muito tóxico, e que só matava os insetos adultos. Seus ovos, ou lêndeas, logo completavam o ciclo, e os piolhos pareciam brotar da própria cabeça de Meidenusa.
A mãe de Meidenusa era criteriosa. Logo que descobria uma nova onda dos nojentos insetos, esperava que a filha almoçasse após a escola e avisava: hora de catar piolhos. Os olhos da menina marejavam. Anunciava-se uma longa tarde de castigo, até que a mãe inspecionasse cada fio, munida de um pente-fino. Pois era muito cabelo.
Rebelde por ter de ficar imóvel tanto tempo, Meidenusa dava pirraça e apanhava. E era assim toda semana.
Lá pelos doze anos, um dia Meidenusa passou a mão pelos próprios cabelos e, para sua surpresa, saiu um piolho em sua mão. Deus! Pensou desesperada. Vai começar tudo outra vez. Procurou o Neocid embaixo do tanque de lavar roupas e ficou horas com o medicamento no couro cabeludo, a título de uma hidratação. Quando não sentia mais a cabeça coçar, lavou-a longamente, até que a mãe a repreendeu por demorar tanto tempo no chuveiro. Enxugou os cabelos e pendurou a toalha na área de serviço. Sentia imenso alívio.
Não demorou, escutou um berro da mãe. Chegando às pressas à área de serviço, descobriu que fora flagrada. Muito brava, a mãe perguntou: que piolhos são esses passeando em sua toalha? Não teve meu pé me dói. Outra sessão de cata-piolhos, com eventuais tapas na cabeça, para que Meidenusa ficasse quieta. E para que parasse de esconder a peste na cabeça.
Isso durou até que sua família mudasse, por ordem da empresa que empregava seu pai, para um lugar com saneamento básico.
Meidenusa nunca mais teve ou ouviu falar de piolhos. Cresceu, estudou, cortou os cabelos, galgou degraus até chegar à classe média alta. E viu nascer a moda da proteção ao ambiente.
Dentre diversos hábitos que adotou como parte do seu estilo de vida, ela e seu marido venderam seus carros. Passaram a usar o transporte coletivo, acreditando que este só melhoraria se tivesse como usuários membros da classe média. Tinham visto alguns bons exemplos na Europa.
Claro que Meidenusa às vezes se perguntava se havia feito uma boa escolha. Os cheiros humanos nos ônibus lembravam a obra de Aluísio de Azevedo. E uma vez teve de ceder o lugar a uma grávida que cochilava em pé com a cabeça encostada a uma barra de metal. Olhou em volta, tantos jovens... Ninguém solidário à grávida. Meidenusa foi balançando conforme as freadas e conversões do motorista e ainda teve que ralhar com um senhor que passou a mão indevidamente sobre seu corpo.
Numa dessas viagens de ônibus, Meidenusa estava sentada à janela, para ficar a salvo dos odores. De repente, sentou-se a seu lado uma mãe e pôs a filhinha no colo. Meidenusa fez comentários simpáticos sobre como era uma gracinha a menina, perguntou seu nome, fez outros agrados, até que uma visão do inferno a deixou sem ar: piolhos passeavam sobre os cabelos penteadinhos e presos da menina.
A língua de Meidenusa berrou histérica, antes que sua cabeça pensasse: piolho ainda existe?!!!
Cabeças se voltaram em sua direção. Houve quem, lá atrás, se levantasse para saber qual a razão do burburinho geral. A mãe da menininha não sabia onde enfiar a cara: passo remédio toda semana, não adianta, senhora dona.
Uma velhinha sentada à frente, num dos assentos altos, reservados a idosos, gestantes e pessoas com deficiências, virou-se com dificuldade para trás, apoiada em sua bengala, e dirigiu-se à mãe: a senhora não sabia que basta tomar um comprimidinho?
Lágrimas subiram aos olhos de Meidenusa. Quantas tardes de leitura perdera, para que o Neocid, o pente-fino e os impacientes tapas de sua mãe combatessem os piolhos! Se eu tivesse nascido apenas algumas décadas depois, teria lido muito mais, fungou Meidenusa.
Fez muxoxo e olhou pela janela. Por que é que não temos saneamento básico e educação para a saúde em todo canto?
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Da sobrevivência dos piolhos
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