Dona Vera era uma professora já às vésperas da
aposentadoria. Titular da cátedra de Língua Portuguesa, ensinava o falar
materno às antigas. Com muitos exercícios de gramática para fixar e uma rígida
disciplina em classe. Os que dela se lembram não conseguem entender como pudera
ser tão amada. Não deixava aluno sair da classe para ir ao banheiro ou beber
água. Para isso existia a hora do recreio, segundo a professora.
Chegava à escola sempre bem antes do início das aulas e
apenas se ia quando já não restava ninguém. Recolhia cadernos para corrigir,
entregava seus registros sem rasuras, sempre na data certa. Trabalhava nos
turnos matutino e vespertino, portando-se cotidianamente como a bela mulher que
era. Ainda que brilhasse no alto do céu o sol dos trópicos. Maquiagem sempre em dia, roupas que se
ajustavam às suas belas e generosas curvas, e ainda assim jamais se viu quem
lhe faltasse com o respeito.
Dirigia-se aos alunos como meu jovem, minha jovem. Queira se
assentar. Por gentileza, levante a mão e aguarde sua vez para falar. Não
admitia que não se fizesse o dever de casa, o que muitas vezes significava
conjugar um verbo em todos os seus tempos e modos. Não repetia prova nem mesmo
diante de atestado médico. Quando ela chegava ao trabalho, os meninos corriam para
a fila, sussurrando: aí vem Dona Vera!
Um dos alunos morava no mesmo prédio da professora e contava
que os vizinhos ouviam seus saltos subindo as escadas, e as portas se abriam
vagarosamente para que as curiosas donas-de-casa tentassem adivinhar o perfume
do dia. De todas as habitantes do elegante edifício, apenas Dona Vera
trabalhava fora. E morava sozinha no último andar.
Uma vez matriculou-se um menino em sua classe. Totalmente
diferente dos rosados e bem nutridos alunos da escola. Era raquítico, pálido,
silencioso, usava roupas de segunda mão, sempre muito desgastadas. Os colegas tinham
asco e não se aproximavam dele. E, para piorar, o menino não conseguia grafar
uma só palavra da Língua Portuguesa.
Na sala dos professores, em pesado silêncio, aguardava-se
curiosamente o posicionamento de Dona Vera. Pois era óbvio que ela não
admitiria tal degeneração em sua classe. Cadernos sempre amassados e sujos.
Material sempre incompleto. A direção sofria pressões para retirar o aluno da
escola, mas tratava-se do filho da mais prestimosa zeladora. Era bolsista.
Dona Vera, que permanecia sempre sentada em sua mesa, de
onde distribuía as instruções e onde recebia tímidos alunos para tirarem
dúvidas, levantou-se de seu lugar na segunda semana após a matrícula do menino
e foi sentar-se ao seu lado. Pequenos olhares assustados não tinham dúvidas:
era o fim da presença do bolsista na classe. Mas Dona Vera passou uns textos
naquelas encardidas folhas de caderno, tomou leitura, fez ditado, pediu cópia.
Nenhuma reprimenda fez ao aluno e voltou à sua mesa. Ao final da aula, informou
à classe: de hoje em diante, quinze minutos de cada aula serão dedicados ao
Joaquim. Durante a aula de Joaquim, vocês permanecerão silenciosos em seus
lugares aguardando que eu acabe, e então poderão me solicitar. A reação a isso
foi um silêncio sepulcral.
Joaquim costumava se esconder na hora do recreio para não
tomar tapas na cabeça, para não receber terríveis apelidos, para não sair
sangrando de qualquer agressão que sofresse. A salvação era ser pequenino,
meter-se em qualquer buraco, e ter mãe trabalhando na escola. Muitas vezes, o
esconderijo era a porta da cantina.
Um dia, Dona Vera chegou muito adiantada e surpreendeu uns
garotos submetendo Joaquim a um corredor polonês. Nada disse. Aproximou-se. Ao
sentirem sua presença, os garotos quase alcançaram o milagre da invisibilidade.
Ela olhou cada um, citando-o por nome, e disse com baixa e pausada voz: aguardo
os senhores em meu gabinete, em fila e sem qualquer ruído enquanto esperam.
Não se sabe o que disse Dona Vera a cada um dos oito garotos
que entraram em seu gabinete. Sabem todos que os garotos saíram de olhos
vermelhos, calados, e que Dona Vera, pela primeira vez em décadas, chegou
atrasada à sala de aula onde, disciplinadamente, esperavam-na seus alunos.
Dia seguinte, a surpresa. Um dos garotos autores do corredor
polonês chegou à classe de Dona Vera, pediu licença, cumprimentou e informou
que vinha exercer sua monitoria. Dona Vera chamou-o com o dedo até sua mesa,
apresentou-lhe algumas folhas mimeografadas, deu instruções em voz baixa, e o
garoto, para pasmo geral, dirigiu-se à mesa de Joaquim, onde lhe ensinou as
lições.
E assim, dia-após-dia, compareceram à classe todos os
protagonistas do corredor polonês. Finda a primeira rodada, teve início a
segunda. E assim até o final do ano.
Joaquim nunca chegou a ser brilhante com Dona Vera ou com
qualquer outro professor. Passava sempre
raspando e às vezes precisava que o conselho de classe lhe concedesse um ou
dois pontos. Mas todos sabiam que nenhuma crueldade podia ser feita àquele
menino. Dona Vera parecia ter um terceiro olho e flagrava qualquer esboço de
tentativa.
No álbum de formandos de 1972, está a foto de Joaquim.
Sabe-se que ele não compareceu à celebração, pois sua família não pudera arcar
com os custos. Mas um longo e emocionado texto, na inconfundível caligrafia de
Dona Vera, cheia de nuanças e laços, encontra-se, amarelado, entre as páginas de
fotos. Trata-se do discurso de paraninfa, no qual Dona Vera disserta sobre o
quanto aprendeu com Joaquim.
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