A pantomina

Written By Ana Claudia Gomes on terça-feira, 3 de março de 2015 | 03:41

Um engenheiro visionário, desses que enxergam muito à frente, decidiu abrir uma engenharia, estando o país em crise. Seus irmãos, que não entendiam visionários, comentavam à boca pequena que o primogênito entre todos eles, sempre considerado tão inteligente, parecia estar batendo os pinos.
De fato, no começo, era um predinho aqui, uma obra pública ali, e o visionário trabalhando como empregado de outros. Mas, estranhamente, amanhecia sempre muito alegre, e aos incrédulos dizia: sou filho da esperança.
Duas décadas se passaram nessa lenga-lenga. E nada do visionário desistir. Belo dia, o governo abriu uma licitação para obra faraônica no remoto sul do país. Terra de ninguém, açoitada por constantes tornados e geadas. O país estava quebrado, as estradas não chegavam até o local e o visionário não tinha currículo para concorrer.
Os irmãos promoveram um almoço em família para tentar demover o primogênito de seu intento. Tudo em vão. Ele ainda pediu uns atestados da empresa do irmão e se inscreveu na concorrência. Por falta de outros visionários concorrentes, venceu. O concorrente a constar nos documentos, além de não ser visionário, era fake. Uma prática corrente nas concorrências do país.
Moveu montanhas, mas tornou realidade a obra faraônica. E enriqueceu da noite para o dia. Desde então, foi recorde atrás de recorde. Ele sempre visionário, enxergando muito à frente.
Veio o capitalismo financeiro e o engenheiro não teve dúvidas: decidiu abrir o capital. Contratou consultoria e viu que, dentre outras mudanças na gestão e nos processos, precisaria abandonar o modelo monárquico em que trabalhava, e simular uma democracia participativa empresarial.
Os consultores trabalharam noite e dia para construir um texto-base, dourando o passado da empresa e dotando de brilhos seu futuro. Tudo o que a lei mandava, mas que não era cumprido, aparecia no texto-base. E, para não deixar dúvidas, constava da colorida capa a logomarca do sindicato. Imagem é tudo.
Os peões de todo o país foram convocados para um congresso interno, em que o texto-base deveria ser avaliado e aprovado. Quando leram, todos pensaram exatamente a mesma coisa: precisamos dar um jeito de dizer amém a tudo isso aqui, ou estamos no olho-da-rua. Pois é óbvio que não temos estabilidade no emprego e a fila de candidatos às nossas vagas é grande.
Um peão visionário começou a espalhar aos pés-dos-ouvidos dos colegas da obra faraônica que o melhor a fazer era encenar o congresso. Ele chegou a propor algumas noites de ensaio, mas os colegas mostraram a inviabilidade da proposta, por causa das horas-extras que todos precisavam fazer para sobreviver. Mas reliam o texto e, conforme iam surgindo novas e criativas ideias, espalhavam-nas através da rádio-peão. Combinaram algumas palavras-chave, ou senhas, que, quando pronunciadas, deveriam engendrar calorosos aplausos.
Chegou o grande dia. Os consultores estavam um tanto tensos, pois sabiam tratar-se o texto de uma maquiagem da realidade. E tudo piorou quando souberam que o engenheiro visionário estaria presente ao evento daquela que fora a sua obra-marco: a faraônica.
Mas os peões chegaram muito alegres, barbeados, alguns com colares havaianos pendurados no pescoço. Um deles foi até mais atrevido e chegou ostentando um nariz de palhaço. Encontraram um farto lanche e interrogaram-se, silenciosamente, por que não havia vale-refeição.
A leitura e aprovação do texto foi uma alegria. Um verdadeiro carnaval. Quando se lia cada item, verdadeiramente mentiroso, todos batiam palmas e davam vivas ao engenheiro visionário. Concordaram que havia uniformes e capacetes para todos, bem como ginástica laboral; que a cada hora de trabalho, podiam fazer um intervalo de dez minutos, que não tinham conhecimento de um só acidente de trabalho em toda a história da empresa. Ovacionaram quando foi dada como fato a inexistente participação nos lucros que, a partir de então, tornar-se-ia oficial.
Os consultores ficaram de queixo caído com tanta animação. Já tinham na manga os nomes indicados para a Comissão Interna de Prevenção de Acidentes de Trabalho. Mas, para constar, perguntaram se havia candidatos. Os próprios indicados levantaram simultaneamente as mãos e foram aplaudidos de pé pelos colegas.
Para descontrair ainda mais, o peão autor da ideia da encenação sugeriu que os novos membros da Cipat desfilassem como rainhas da primavera. Sugestão recebida com grande entusiasmo por todos os congressistas.
Os peões eleitos titubearam por um segundo, temerosos de que sua macheza fosse posta em questão. Viram entretanto um piscar de olhos do peão líder, aliás anarquista, e deram duas voltas rebolantes pelo palco, sob os respeitosos assovios e vivas dos colegas.
O engenheiro visionário sorteou brindes, conferiu medalha de honra ao mérito aos peões-padrão e convidou a todos para um farto e suculento churrasco.
Depois, deu no jornal da empresa que, em todo o país, o congresso interno fora um sucesso. Os peões da obra faraônica viram as fotos dos membros da Cipat, de todas as principais obras da engenharia no país, desfilando como rainhas da primavera. Ficaram tristes ao constatar que não houvera nenhuma originalidade ou ineditismo em sua pantomina. Mas a participação nos lucros realmente passou a existir. E até hoje não há um só registro de acidente de trabalho na bilionária engenharia.
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