A cantora do rádio

Written By Ana Claudia Gomes on domingo, 22 de março de 2015 | 07:25



Cheila ainda pequenina, já não conseguia ficar quieta no banco da igreja, enquanto se desenvolvia o culto. Os bancos eram de madeira-de-lei, lustrosos, lisinhos, mas lhe pareciam ter pregos. Era aquele toquinho, de sapatinhos vermelhos, meia branca com pom-pom, e irrequieta. Logo descobriram que cantava, com maviosa voz, que declamava, que pregava... Tudo o que fosse no microfone, fora do banco lisinho e lustroso.
A dirigente da mocidade, uma bela professora que, sabe-se lá como, tinha autorização para manter os cabelos curtos, convidou Cheila para participar de seu programa de rádio. Era sábado à tarde, ao vivo, e se destinava ao público crente. As pernas de Cheila bambearam. Mas atrevida, como sempre fora, não ia recuar diante de um caminho aberto.
Então sua mãe a vestiu com esmero, escovou seus longos cabelos até que brilhassem, e seu pai a levou no fuscão café-com-leite.
Quando entrou na casa da professora, Cheila arrependeu-se imediatamente de sua maldita coragem. A casa era impecavelmente limpa, como a sua própria. Mas era tão bela, que parecia não poder ser tocada. Uma sala enorme, com três ambientes, um deles para escutar rádio e vitrola de móvel. Um tapete que, ao ser pisado, afundava. Cheila não foi convidada a conhecer o resto da casa e concluiu que a professora era rica
Esta, aliás muito esbelta, custou, mas ofereceu a Cheila um café com bolo. Sheila viu o café ser feito em um eletrodoméstico até então incógnito para ela. Achou horrível o café. E também o bolo. Nada perto dos quitutes maravilhosos da mamãe. Café de coador, bolinhos de chuva... Eram tempos da emancipação feminina. Da indústria. Do sacrifício do sabor.
Olhou em volta para ver se alguma parede não era de chocolate, a fim de que pudesse se encostar. Ficou muitos minutos experimentando o melhor lugar para esconder as mãos. E a professora corre-que-corre de um lado para outro, preparando-se, atrasada, para o programa.
Saíram. O carro da professora era tão bonito e confortável. Cheila não fazia ideia de sua marca e modelo. Apenas tremia. Aquela gente tão fina a inibia.
O rádio era curioso. Cheila, do chão de seus seis anos, olhava aquela parafernália, cabine, botões, microfone suspenso, dois pratos para os vinis, e se perguntava como é que aquilo ia parar no radinho vermelho de sua casa.
A professora, anunciou, depois de cumprimentar alegremente seus ouvintes com a paz do Senhor. Hoje nossa irmãzinha Cheila abrilhantará nosso programa com seu canto e suas palavras. Todos conhecem esse nosso pequeno tesouro. Cheila parara de respirar. Toda inspiração voara. E um hino que ela ainda não conhecia parecia ecoar na minúscula cabine: se eu pudesse, voava, ao encontro de Deus! Abandonava esse mundo, saía voando, só parava no céu. Mas alguém a puxava pelo braço para o microfone.
Cheila não falou coisa-com-coisa. Gaguejou. Desafinou. A luz vermelha acendia, ela esquecia e falava. A luz verde acendia, ela esquecia o que dizer, silenciava.
A professora gracejou: nossa irmãzinha Cheila é muito criança, está tímida. O Senhor nosso Deus há de abrir-lhe as portas para outra oportunidade. Cheila guardou essa carinhosa avaliação no fundinho da sua alma. Professor é professor, ou não é?
Cheila saiu da cabine, sentou-se só. Parecia-lhe que os adultos tinham reprimendas no olhar.
A volta foi lúgubre. Cheila pensava como seria sobreviver até a manhã seguinte, quando reencontraria seus pais, na escola dominical.
Comeu mais bolo. Naquela casa, como estranhou a menina, não se jantava. Isso reforçou sua impressão de que a professora era rica. Foi acomodada num colchãozinho no chão, num grande e exuberante quarto vazio. De tacos sintecados. Não foi sua noite mais dura. Foi apenas uma das muitas noites claras, insones.
Manhã de domingo chegou, mais um café insosso e o reencontro da família, do ninho... Mesmo fracassando no rádio, porque naquele tempo não havia preparação cultural para cantoras como ela, Cheila foi fotografada com toda a classe de crianças da escola dominical. Que eu saiba, Cheila nunca mais foi cantora no rádio.
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