Nêga Rita nasceu aí pelos finzinhos da escravidão no Brasil. Lá nos calcanhar do Judas, no meio de um mar de morros, como reza a tradição. De pequena, já era a pirraça em pessoa.
Nigrinha tinhosa! Ralhava sua mãe.
Com sete anos, já dava uns bons petelecos em qualquer menino que se metesse a besta com ela. Quando mocinha, percebia que o Sinhozinho gostava de levar as negrinhas pros cantos, à força. Tinha as que iam de boa vontade também. Nêga Rita era de um país onde branco gostava de namorar negro. E vice versa. Apesar de haver racismo e forte. Uma democracia racial pra inglês ver.
Decidiu seduzir o Sinhozinho. Aos 14 anos já estava prenha. Nigrinha tinhosa! Ralhou sua mãe.
Sinhozinho ficou apertado. Ia nascer mais um mulatinho. E Nêga Rita avisou: óia, se'ocê num me arrumá minha furria, minha vó vai te botá de cama.
E a velha Rita. Todos sabiam de seus poderes para o bem de uns e para o mal de outros. Porque não há bem que seja bem para todos. E nem mal que a todos prejudique.
Além do mais, Sinhozinho gostava da Nêga Rita. Bonita, a luxenta da neguinha. Gostava de pedir a ele alguma bugiganga das irmãs sinhás. E desfilava toda toda. De colarzinho, anel, fita no cabelo. Daí as brigas homéricas entre os jovens irmãos na casa grande.
E a barriguinha da Nêga Rita ia crescendo, o povo já falava mal da menina. E nada de Sinhozinho arrumar a carta.
Pois não foi Nêga Rita conversar com sua avó? Vó, quero aprender a benzer. Velha Rita olhou para ela fuzilando. Mas a sabedoria lhe avisou. Deixa essa nigrinha meter a mão em cumbuca prá lá.
Nêga Rita começou aprendendo segredos para o nascimento de seu mulatinho. E foi aprendendo as plantas. As palavras. Até que um dia, Sinhozinho caiu de cama.
Na fazenda corria à boca solta que o Sinhô podia perder seu primogênito. As namoradinhas do Sinhozinho tinham opiniões diversas. Algumas rezavam por sua cura. Outras por sua alma. Nêga Rita só queria ver quando chegava sua furria.
Não demorou. O Sinhô a chamou pra conversar. O escritório do homem era mesmo um luxo, como as mucamas diziam. Livros pra todo lado e uma coleção de armas.
Pois é Ritinha. Meu filho está com medo de morrer. Então ele fez uma promessa a Nossa Senhora Aparecida, de libertar a sua família, esperando a cura. Nêga Rita beijou a mão do Sinhô. Escorreu uma lágrima. Mas era de crocodilo. E foi saltitando contar à mãe.
A mãe pensou que Nêga Rita fosse doida. Furria pra quê? Pra todo lado, naquele mar de morros, só tinha fazendeiro e capitão-do-mato. Mas os três irmãos de Nêga Rita toparam o desafio: nóis vamo comcê.
Sinhô deu os papeis de Nêga Rita, que entregou orgulhosa o de sua mãe. E bem cedinho antes do sol nascer. Ela e seus irmãos maiores saíram. Matulinha nas costas. A encontrar o destino.
Depois que a comida acabou, e o alimento de cada dia era o que Deus dava, ainda caminharam muito. Até que não havia mais trilhas. E era preciso fazer picadas na mata. De repente, Nêga Rita vaticinou. O lugar é aqui. Os irmãos olharam interrogativos.
Tem água perto. Tô sentindo o cheiro.
Andaram em círculos, encontraram o corguinho e boa área plana. Num fundilho do mar de morros. Ali construíram a primeira casinha de capim barreado.
Nêga Rita pariu sozinha seu mulatinho José. E plantando e colhendo. Encontrando às escondidas algum negão das fazendas vizinhas. Teve mais quatro filhos. Sozinha. E nunca casou.
A escravidão já estava no fim mesmo. Muito negro alforriado começou a se mudar pra perto do clã de Nêga Rita.
Editada a dita Lei Áurea, a negrada começou a visitar a cidade mais próxima. Ver se complementava a renda pra comprar um ou outro putucum.
Chegavam com seis sete cavalos carregados de capim. Capim mumbeca, paina, marcela, taboa. Pra fazer colchão acolchoado e travesseiro. O povaréu da cidade olhava aquele tanto de negro junto e comentava. Onde esse povo vive só pode ser um quilombo. Pronto. O nome pegou.
Nêga Rita voltava toda faceira da cidade, chita nova, sandália no pé, pulseira vermelha. E todos sabiam. Era a manda-chuva do quilombo. Uma espécie de rainha. Uma rainha.
Tão tinhosa que arrumou título de propriedade para todos os seus protegidos. Quase súditos. Sabe lá por quais meios. Nesse caso importavam os fins. Ela tinha um pequeno país negro no coração do Brasil.
A negrada plantava milho e feijão. Engordava porco e criava galinha, pato. Coletava capim e frevia nos bailes. Era uma vida difícil viu.
Mas era livre. Sanfoneiro era tipo o vice-rei. Estava abaixo da Nêga Rita.
Ai de quem se metesse com ela. Se ela olhasse a barriga de uma grávida. A futura mamãe a convidava para parteira e madrinha.
Escolhia os afilhados.
Contam que ensinava a todos quantos. Não é cuié Teodoro. É talher
E o mulatinho José? Era a menina dos seus olhos. Para casar teve que enfrentar a má vontade da mãe por oito longos anos. Tipo Jacó na Bíblia. E depois de casado amargou os caprichos de seus ciúmes. Só morta Nêga Rita parou de meter a colher na vida conjugal do filho.
Uma negona. Admira-se uma contraparente. E queria ser chique. Queria ser bajulada. Imagina.
Nêga Rita encantou-se. Ao invés de virar nome de rua, virou sobrenome de homem. Antônio Rita, Zeca Rita, Joaquim Rita.
Sua negrada ainda está no quilombo. Planta colhe ferve nos bailes. Lembra de Nêga Rita com um arrepio de medo.
Não sabe que ela foi uma Zumbi de saias. Uma rainha à moda de África.
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