Beraldo nasceu num cantão conhecido como calcanhar do Judas. Gerações após o fim da escravidão negra, sua vida parecia ir pouco além do que comer, do fumo de rolo, da pinga nossa de cada dia.
Não deu pra estudar. Apesar de toda a vida ter bebido água de mina. Viveu em casas de pau-a-pique, feitas pelo pai e vizinhos em mutirão.
O trabalho começou aos sete anos. Carrear boi, plantar lavoura. Festas não. O pai não deixava.
Carinhoso, a todos o pai chamava coração. Coração, vem comer um pedaço de toucinho que secou na fumaça do fogão. Coração, a manga tá um mel. Mas se lhe pisavam o calo, era tiro no pé. Mesmo que fosse o pé do filho.
A mãe tinha um rebento a cada ano. Certo ano, certo dia, Beraldo entra em casa, ainda pequetito, e flagra o pai chutando o ventre grávido da mãe.
Cegou. Pegou da foice que se encontrava à porta de entrada e partiu sobre o pai, a brandi-la.
O pai ficou retalhado. Vivo, mas incapaz de um gesto. Beraldo, pernas pra que te quero. Sumiu na capoeira e pensou nunca mais voltar.
Viu luzes nas matas. Eram mães do ouro, demarcando os lugares onde os negros fizeram brotar o ouro dos brancos.
Menino, entretanto, não lhe parecia haver sentido na vida se não ouvisse o chamado do pai, coração.
Vai saber como foi esse reencontro. O bebê que a mãe gestava morreu. Mas esta sobreviveu.
Beraldo passou a viver meio tonto, não apenas da pinga. Morto o pai, tempos depois, coube-lhe a casa em adobe, também ela construída em mutirão. Cada santinho no altar doméstico, cada parede enegrecida e até o centenário jacarandá, morto pelo tempo, serrado em tábuas e abrigado na casa, para não carunchar. Cada pequeno objeto legado pelo pai tem seu guardião. Chora Beraldo a memória do amoroso pai.
Não casou. Não vai às festas. Apenas trabalha e faz guarda ao decrépito lar que herdou. Cinema, nunca lhe foi dado ver.
Minhas desculpas por tal título. Não resisti ao apelo do original.
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