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Conversa no ônibus

Written By Ana Claudia Gomes on sexta-feira, 24 de outubro de 2014 | 03:41

Carola gostava de viajar calada. Se possível, até dormir. Seu primeiro marido a proibira de ressonar logo que o carro se punha em movimento, como lhe permitira sempre seu pai. Assim, ela perdeu o delicioso hábito de cochilar aos solavancos.
Vários maridos depois, lutava ela para recuperar o hábito, quando outra passageira do ônibus pediu licença para sentar-se a seu lado. Carola fez que sim, tenha a gentileza, e voltou a fechar os olhos, desejando a madorna. Mas quando os abria, que um hábito perdido não se recupera assim em qualquer viagem, a vizinha de poltrona puxava um simpático assunto.
Certa altura, não deu mais para Carola ser monossilábica. Dissera a passageira, horrível andar de ônibus, não? Ao que Carola respondeu: vivi tempos piores. Hoje a viagem parece durar menos, tem ar condicionado e a gente não divide o espaço com as galinhas... Só é chato que às vezes se precisa viajar em pé. Mas alguém tem que viajar de ônibus, pois onde vai caber tanto carro? Vê-se que Carola não estava em seus melhores humores.
A vizinha mudou de assunto. Diz que vai chover, né? Estou torcendo que chova, mas depois que eu chegar em casa... Já no limite, Carola respondeu. Pois por mim pode chover a cântaros. Desço no meu ponto, de mala e tudo, e vou pra casa na água, chutando a enxurrada. Você já viu como o horizonte está branco de tanta fumaça? Quer ver, olha ali pela janela, ó! O talude da indústria foi varrido pelas chamas, a mata do sítio, sob as árvores mais robustas, está carbonizada.
E Carola desandou. Foi apontando os sinais de queimada por toda parte à esbugalhada vizinha.
Deus tá no controle, defendeu-se esta. E Carola disparou. É, mas a parte que Ele deixou prá gente, a gente não tá fazendo, né?
Era a hora da vizinha descer. Tchau, prazer. Carola não se preocupara em saber o nome da interlocutora. Estava preocupada demais com cochilos e queimadas.
Minutos depois, o céu desabou. Carola desceu em seu ponto, de mala e tudo, encharcou-se na tempestade e chutou a enxurrada. Singing in the rain... I'm singing in the rain... Vai ver que Deus estava no controle.



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