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A benzedeira

Written By Ana Claudia Gomes on sexta-feira, 12 de setembro de 2014 | 08:26


Luzia Virgínia da Conceição era seu nome de batismo. Embora tenha recebido nomes advindos de diferentes culturas, estes convergem todos para atributos da Maria católica, mãe de Jesus. Iluminação, pureza, maternidade. E o feminino os traspassa a todos. Quantas expectativas puseram nela seus pais! Não se pode dizer que ela as tenha frustrado.
Nasceu na região rural de uma provinciana cidade mineira. Nada ainda me foi revelado de sua infância e juventude, exceto que aprendera os ofícios da roça e se casara um um belo homem alto, magro, louro, de olhos celestes. Ela, baixinha, troncuda, de olhos negros, pequenos, ladinos.
Como era da Conceição, trouxe à luz sete filhos, três meninos, quatro meninas. Uma série numérica significativa para esotéricos. Quase todos nós o somos, porém. Nem tão Virgínia assim, concebeu no pecado, isto é, nas atividades carnais. Como qualquer santa ou sacerdotisa. Entretanto, suponho, não com prazer. Casada aos treze anos, o que não passaria despercebido aos já mencionados esotéricos, pode ser que tenha sido impedida de conceber com prazer, pois foi dada ao matrimônio assim que a mocidade se lhe aflorou.
O príncipe de olhos claros, sensível, gentil, não tinha vigor físico e nem herança para prover sustento à filharada. Assim, Luzia foi arrimo de família durante toda a sua vida adulta, cedo inaugurada. Exercia trabalhos sazonais nos campos, levando o filho ou filha que eventualmente estivesse sendo amamentado. Fazia seu turno doméstico à noite, preparando as refeições do dia seguinte. Era dura com as filhas mais velhas, para que cuidassem da humilde habitação e dos irmãos e irmãs menores.
Seus filhos foram muito amados, tanto por ela quanto por seu marido, e colecionam inumeráveis lembranças desses tão diversos amores. Cada qual, pai e mãe, tinha seu jeito de amar. Luzia sabia amar inclusive com ralhos, sovas e com a inserção de seus rebentos no trabalho infantil. Coisas do tempo.
Num nefasto dia, o primogênito de Luzia apanhou do filho do patrão. Sobre as tamancas, a grande mãe decidiu: não moro mais em casa dos outros; não admito que batam em filho meu. E rumou para o pequenino núcleo urbano, sede do recém-emancipado município, onde obteve a posse de um lote no loteamento de Angola.
Reza a tradição que essa toponímia tem origem no fato de que ali ficavam confinados os afrodescendentes locais, nos idos tempos da escravidão e mesmo após a abolição. E há mais vestígios dessa história: reminiscências de quilombolas, de cemitérios de escravos, uma igreja e uma rua do Rosário. Como há em cidades brasileiras de modo geral.
Luzia, que era branca, esposa de um branco, trazia marcas dos povos indígenas e africanos. Seu pai conhecia os segredos curativos das plantas e lhos transmitiu a ela. Ela frequentava terreiros de cultos afro-brasileiros, designados de centros espíritas. Para amainar o pejorativo sentido de Mal a eles atribuído, com certeza.
Trabalhou incansável até construir os três primeiros cômodos que abrigaram sua família no Angola. Um quarto para o casal, um quarto para a filharada e uma sala-cozinha. Colchões de capim precisavam ser afofados toda noite.
Uma vez citadina, trocou o trabalho de roça pela lavagem de roupas nas fartas e límpidas águas do rio de sua cidade. E também, por longos períodos, atuou como afamada cozinheira nas pensões locais. Um toquinho de gente que se auto-intitulava pé-de-boi.
Foi aí que questionou de vez seu nome Virgínia. Arrumou um amante, para escândalo da província. E, encarando nos olhos a recriminação que se lhe advinha de todos os lados, ampliou sua casa, separou corpo de seu marido, construiu-lhe um abrigo no quintal e legou a seus filhos, dentre outras heranças, a pecha de ter sido uma mulher rebelde.
Os meninos encaravam nas ruas outros valentões que, sobre o santo nome da mãe, proferissem impropérios. As meninas sempre causaram em seus companheiros o medo de que saíssem à mãe.
Dizem as línguas, não se sabe se boas ou más, que uma das filhas foi concebida nesse outro pecado da carne, com o amante. Não por acaso, a mais liberta das meninas. Que também o eram.
Não satisfeita, Luzia resolveu fazer jus aos saberes com que fora brindada e tornou-se benzedeira. Seu poder era tamanho. Sua memória sucedeu em décadas a sua morte. Benzia quebranto, mau-olhado, espinhela caída. Recebia os aflitos no outrora quarto de casal, em que não mais dormia, embora ali houvesse duas bem adornadas camas. Não raro, seu raminho de arruda ficava completamente murcho ao final da bendição. E, como não recebia pagamento, seus armários e cômodas acumulavam presentes - louças, roupas de cama, mesa e banho, belos objetos muitas vezes feitos pelas próprias mãos dos muitos que lhe eram gratos.
Decidiu também não ficar confinada ao Angola e nem à provinciana cidade. Nada de senzala, nada de quilombo. Valendo-se de seu desenvolvido saber de cozinheira, viajava em excursões, trocando seus quitutes pela possibilidade de olhar o Brasil na companhia de seu amado. Aquele que chamamos - os seus contemporâneos e eu - de amante.
Ainda não era idosa quando perdeu aquele que lhe tornou verdadeiramente cativo o coração. Não pôde chorar publicamente as lágrimas de viúva, pois seu marido era vivo e continuava, apaixonadamente, vivendo em seu quintal. Mas ela jamais voltou atrás em sua decisão sobre o arranjo conjugal, pois seria trair seu mais enigmático feminino.
Seguiu o caminho de matriarca, preparando quatro garrafas de café pela manhã e quatro à tarde. Eram muitos os que aceitavam um cafezinho após a curadora bendição. Alguns preferiam café forte e amargo, outros café forte e doce; havia ainda os do café “água-de-batata”, com pouco ou muito açúcar. Havia café para todos.
Seus filhos estavam sempre à roda, ainda que se ressentissem das escolhas afetivas da mãe. Memoráveis biscoitos de polvilho fritos eram a deixa para as constantes presenças. Não havia nada como os quitutes da mãe, como seus conselhos, como seu poder agregador. E o amoroso pai também se encontrava lá.
Luzia ficou mais triste. Olhos com mais e mais névoas. Aposentada, não precisou mais quarar a roupa nas lisas pedras do rio, nem suportar os calores dos insalubres caldeirões. Trazia no braço uma extensa cicatriz de queimadura, dos tempos anteriores ao triunfo da cirurgia plástica. Perdeu também a força e a motivação para viajar. Um dia, encomendou uma placa que restringia os dias e horários das bendições. O cansaço era quase um vulto ao seu lado.
Dormia pouco, andava atribulada pela casa, até que um ataque fulminante a subtraiu, quando nos braços do filho caçula O que também ganhara casa no quintal e, como o pai, lhe fazia guarda.
No dia do velório, sol a pino, uma multidão ocupava aquela rua do Angola, de um a outro extremo. Ela, que ensinava à sua prole a necessidade de ir a velórios, teve incontáveis manifestações de carinho e saudade, quando só seu corpo jazia e a energia se fora. Ela aceitara a missão de ser uma mulher iluminada, de exercer com pureza a cura e de ser mãe, com o que há de doce e de amargo nessa função. Não creio que tenha ouvido falar em feminismo. Mas combateu o bom combate para ser mulher. Porque antes e depois dela, sempre houve mulheres assim.
A cidade tornou-se metrópole e continuou provinciana. O caudaloso rio foi reduzido a um triste canal de resíduos. As benzedeiras andam desaparecendo. Mas Luzia continua por aí, renascendo com outras roupagens, em várias mulheres. E homens.             
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