Outro dia, tive lances de uma conversa memorável com um menino pequeno.
Começou com sua mãe lhe dando uma "dura" por causa de sapatos. Dos
meandros, só me lembro que, em resposta à minha afirmação de que os adultos só falam bobagem, né Francisco? - Ele me disse: "então você está
falando bobagem...". Ainda bem que meu pescoço segurou a cabeça. Vejam que
crítica ele fez a O Pequeno Príncipe, livro que eu tinha acabado de debater num encontro literário: "será que os adultos falam mesmo
sempre bobagem?"
Só sei que, no decorrer, eu disse a ele que não gostava de meu
nome, composto, porque o segundo nome significa: aquela que manca, aquela que
claudica, aquela que não decide. Assumir as
influências do próprio nome às vezes é difícil. Eu preferiria ter no meu nome
um certo "glamour" das letras duplicadas, além do posicionamento político-cultural por uma
latinoamérica mais misturada, miscigenada, tão indígena quanto africana, e tão
pouco lusa. Eu preferiria que houvesse uma língua brasileira, uma língua
costarriquenha, uma língua colombiana, sei lá. Línguas latinoamericanas. Nós
não falamos como nossos antigos colonizadores, embora a nossa língua seja
chamada de portuguesa. Escrevemos como eles, no "padrão da língua",
para não nos emanciparmos linguisticamente, e fazermos parte da Europa, que é o
cafona ideal de nossas elites dirigentes, desde sempre.
Disse-lhe a mãe: “se você lhe der um nome, ela pode usá-lo como
pseudônimo”. E explicou o que era pseudônimo, diante da livre e desembaraçada
pergunta do pequeno.
Então Francisco correu na praça, fez várias estripulias, antes de
me dizer: "então seu nome vai ser Bruxa do Bem". Ainda bem que meu
pescoço segurou a cabeça. Eu não coube em mim de contentamento. Ele viu um de
meus desejos, como se eles estivessem transparentes. Transparentes como a
imagem que desejo ver de mim em meu espelho. Transparentes como o desenho de
uma cobra que devorara um elefante, e que era sempre vista pelos adultos como
um chapéu, em O Pequeno Príncipe.
Em nosso encontro literário, acabáramos de discutir O Pequeno Príncipe. Rasgamos seda sobre ele. Jogamos pétalas de rosa sobre ele. Nós o
incensamos. Mas também dissemos que essa infância loura, angelical, da
ingenuidade, da liberdade para ver e dizer verdades, é nossa utopia. Há muitas
infâncias e nem todas elas podem usufruir desse nosso grande desejo de uma
infância livre, saudável, feliz.
Não são apenas as infâncias ricas que são saudáveis. Eu uma vez vi
a liberdade e a felicidade dos meninos de uma aldeia de pescadores, apesar de
trabalharem na infância. Mas a infância de Francisco é rica de tudo, inclusive
de oportunidades para expressar verdades invisíveis ao senso-comum, quer dizer,
àqueles cuja infância foi assassinada dentro de si: os adultos. Os adultos são,
como disse a Legião Urbana, “os senhores da guerra [que] não gostam de
crianças”.
Ser uma bruxa do bem exige tempo, idade, observação. Espero que
Francisco tenha visto meu futuro em sua transparente bola de cristal. O meu
desiderato é embaralhar palavras, como cartas, e delas fazer os feitiços do
bem.
Francisco tem angelicais cabelos de um Pequeno Príncipe. Mas,
melhor ainda, são cabelos negros, emoldurando um rosto negro e uma risada
brasileira.
A infância das nossas mais belas utopias existe.
Para muitas crianças, inclusive dentre as bastante pobres, essa infância
existe. Aleluia. Digam lá, companheiros de Alá, de Buda, como se louva nessas tradições... Nós somos capazes de instaurar nossas utopias no mundo, como disse apaixonada e inteligentemente, Márcia, no encontro literário. E
estamos lutando para universalizá-la, ainda que ao custo dos erros, tropeços,
topadas que advêm da condição humana.
Dizem que o Pequeno Príncipe é o livro das misses. Não pára de
vender desde que foi publicado, na Segunda Grande Guerra. Quando se faz às
misses a estúpida pergunta: “qual é seu livro preferido?", elas quase
sempre respondem que é o Pequeno Príncipe. Uma inteligente fórmula para não
errar. Esta obra sintetiza nossos melhores desejos para a criança, ainda
que com suas inflexões etnocêntricas. As misses não são bobas. Ela geralmente
acabaram de viver a febre de pequeno príncipe pela qual todos passamos na
escola ou no resto da vida. Para responder a uma pergunta estúpida, é preciso
estratégia: responder com um “universal” da cultura. Um dogma, aquilo que
ninguém questiona.
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